São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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GILBERTO DIMENSTEIN

Fernando Henrique tem alguma coisa de PT

Em clima de despedidas e eleições, o presidente Fernando Henrique Cardoso aprovou a idéia de conceder mais uma complementação de renda, desta vez para pessoas de idades entre 16 e 66 anos e atrelada a cursos de qualificação profissional.
O alvo do benefício são pessoas que vivem em famílias que não têm acesso nem à bolsa-alimentação, do Ministério da Saúde, nem à bolsa-escola, do Ministério da Educação, nem ao Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), da Secretaria de Assistência Social.
Com mais essa bolsa seriam atendidos indigentes de todas as faixas etárias; para quem já passou dos 66 anos, ainda que nunca tenha contribuído para a previdência, existe a garantia de um salário mínimo.
Somando-se os anúncios oficiais das metas, estima-se que aquelas quatro bolsas venham a ajudar diretamente pelo menos 13 milhões de brasileiros, sem contar o efeito que provocarão na família. Esses programas constituem um considerável estímulo financeiro para que as crianças não trabalhem, as mães cuidem da saúde dos filhos, os adultos se preparem para o mercado de trabalho e os alunos permaneçam na escola.

Mesmo com valores modestos -os R$ 15 por criança fornecidos pelo bolsa-escola, por exemplo-, os programas de renda mínima jogaram recursos, pela primeira vez com tamanha amplitude, diretamente nas mãos dos mais deserdados, reduzindo o desperdício decorrente da intermediação.
A força dos projetos não está no dinheiro em si, mas na contrapartida de quem o recebe, vinculada à saúde e à educação; daí sua importância para o aumento da produtividade e para a diminuição da desigualdade de oportunidades.
Com o passar dos anos, vão surgir toneladas de estudos e estatísticas que revelarão o alcance dessas medidas -o quanto terão sido capazes de gerar cidadãos mais preparados e uma distribuição de renda menos perversa.
A verdade simples é que essa onda de bolsas lançadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e, agora, largamente usadas na propaganda eleitoral é resultado de um movimento do PT.
Difícil será encontrar alguém com um mínimo de honestidade intelectual que não reconheça essa obviedade histórica.

Como marketing eleitoral e verdade só se encontram, na maioria das vezes, por mera coincidência, o PSDB, numa propaganda da semana passada, apresentou o PT como um bando de indivíduos que só reclamam, que nada propõem, que não vêem nada de positivo, enfim, que vivem carrancudos -a imagem de Lula que o publicitário baiano Duda Mendonça vai tentar desconstruir.
Ex-discípulo de Duda (e também baiano), Nizan Guanaes encarnou o PT na figura do cunhado inconveniente -que abre a geladeira, toma todas as cervejas e ainda reclama de que não estavam muito geladas ou que, sentado em frente à TV, se queixa do tamanho da tela e afirma que o sofá é ruim.
O fecho do narrador: "Olhe, meu amigo, seu cunhado pode até não saber, mas, com certeza, no fundo, no fundo, alguma coisa ele tem do PT".
Vende-se o PT como um partido do contra, que torce pelo pior ou que se aproveita dele.

Na linha do marketing eleitoral, Lula acusa o governo de não fazer nada para reduzir a pobreza -e de nem sequer reconhecer sua influência nos programas de renda mínima. E, ao mesmo tempo, acena com um plano contra a fome. Em essência, mais uma bolsa para a compra de alimentos.
O projeto se apresenta inspirado no "selo da alimentação", que, criado nos Estados Unidos, teve, no Brasil, várias versões em tíquetes de produtos e cestas básicas.
Muitos deles, entretanto, acabaram ou foram reduzidos devido a desperdícios e à roubalheira -fruto da falta de fiscalização combinada com o excesso de esperteza. Da mesma maneira os bilhões gastos com as atuais ações de renda mínima, em suas versões estaduais e municipais, correm o risco de sair pelo ralo por incompetência de gestão. Várias entidades diferentes administram recursos para o mesmo fim; uma empresa privada que assim funcionasse quebraria.
Tradicionalmente, no Brasil, o que se vê são planos de assistência social, mesmo os mais bem-intencionados, gastarem mais do que deveriam em gerência.

Se é para haver um debate sério -e não a troca de imagens estereotipadas criadas por publicitários que fazem de candidatos simples produtos-, o eleitor sairia ganhando se fossem apresentados uns poucos números, ou seja, quanto se deve gastar a mais nos programas de renda mínima (e como se devem gerenciar os recursos de modo que eles se complementem nas esferas federal, estadual e municipal) para que, em quatro anos, se acabe com a fome.

Claro que isso é chato, aborrecido, não rende votos, está mais para artigos técnicos. Talvez estejamos mesmo condenados a fazer da eleição um circo de mídia, no qual o eleitor, sempre iludido, faça o papel daquele personagem com o nariz vermelho.
É como se o eleitor tivesse sempre alguma coisa de palhaço.

PS - Técnicos apresentam uma solução para reduzir desperdícios: um sistema unificado de informações que contenha os dados de todas as famílias beneficiadas com os programas federal, estaduais e municipais de renda mínima. Um mesmo cartão serviria para todos esses programas. É claro que seria preciso convencer os políticos a repartir espaço. Talvez seja mais fácil acabar antes com a fome.

E-mail: gdimen@uol.com.br


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