São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Gradação ascendente

Neste espaço, já analisei diversas questões de alguns dos mais prestigiados vestibulares do país. Em alguns casos, a resolução dessas questões exige o domínio da nomenclatura gramatical; em outros, avalia-se essencialmente a capacidade do candidato de operar com os mecanismos da língua.
Há algum tempo, vimos uma questão da Fuvest que se referia ao comentário de um jornal acerca do filme "Aluga-se Moças", produzido em 1981. "O título traz um dos maiores erros ortográficos já vistos no cinema brasileiro", afirmava o articulista. A pergunta da banca foi a seguinte: "O comentário feito pelo jornal é justificável sob o ponto de vista gramatical? Por quê?".
O que queriam os examinadores? Que o candidato demonstrasse (não só, mas também) algum conhecimento de nomenclatura. Em "Aluga-se Moças", não há problemas ortográficos. O desvio é de concordância (a construção padrão é "Alugam-se moças"), ou seja, o problema é de natureza sintática, e não ortográfica. Moral da história: a resposta é "não".
Na última prova (da primeira fase), a banca formulou uma pergunta com o mesmo tipo de abordagem. Vamos à questão (que tem por base um fragmento de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis):
"A enumeração de substantivos expressa gradação ascendente em: a) "menino mais gracioso, inventivo e travesso"; b) "trazia-o amimado, asseado, enfeitado"; c) "gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas"; d) "papel de rei, ministro, general"; e) "tinha garbo (...), e gravidade, certa magnificência".
O "Aurélio" define "clímax" (sinônimo de "gradação") como "apresentação duma seqüência de idéias em andamento crescente ou decrescente". As seqüências "gracioso", inventivo e travesso" (da alternativa "a") e "amimado, asseado, enfeitado" (da alternativa "b") constituem exemplos de gradação ascendente?
A discussão se torna inútil quando se percebe que nos dois casos ocorrem seqüências de adjetivos. Não custa lembrar: o enunciado fala em substantivos, o que anula de pronto as alternativas "a", "b" e "c" (nesta, "gazear", "ir" e "perseguir", que não constituem gradação, são verbos). Na alternativa "d", existem substantivos, mas quem foi que disse que ministro é superior a rei, e que general é superior a ministro?
A resposta está na alternativa "e". Com os substantivos abstratos "garbo", "gravidade" e "magnificência", o narrador descreve a superioridade de Quincas Borba, protagonista da obra-prima de Machado de Assis.
Pois é aí que entra um segundo aspecto da questão: o vocabulário dos candidatos, o conhecimento do significado dos três substantivos citados. Se não se sabe que "garbo" é sinônimo de "primor", "elegância", "distinção", que "gravidade" significa "austeridade", "sisudez", "circunspecção" e que "magnificência" equivale a "grandiosidade", "pompa", "suntuosidade", fica difícil perceber a ocorrência da gradação e de seu caráter ascendente.
Mais uma vez se vê que a leitura atenta do enunciado das questões é fundamental, mas não basta. Sem um mínimo de vocabulário (muitas vezes próximo do erudito), é quase impossível responder a muitas das questões desse e de outros vestibulares. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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