São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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REVOLTA E PERPLEXIDADE

Idosa levou tiro de fuzil durante confronto entre policiais e traficantes na favela do Vidigal, no Rio

Costureira de 72 anos morta em "guerra" no morro é enterrada

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Nair Santos de Oliveira Costa viveu todos os seus 72 anos no Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro. Nasceu quando o morro ainda era pouco habitado, a falta de saneamento e princípios básicos de urbanização sendo compensada pelo cotidiano de paz. Na noite de terça-feira, ela morreu atingida na cabeça por uma bala de fuzil, a cem metros da casa dela. Parentes culpam a Polícia Militar.
Soldados tentaram entrar no morro, que se localiza entre os bairros nobres do Leblon e de São Conrado, por volta das 19h. Eles estariam reagindo a tiros disparados por traficantes na direção de uma patrulha.
Segundo a família de Nair, os policiais subiram a avenida Presidente João Goulart atirando, num momento em que muitas pessoas voltavam do trabalho.
A costureira e dona-de-casa, que tinha saído para comprar pão, foi alvejada na hora em que chegava à padaria.
"Nós recolhemos os projéteis e temos testemunhas, que vão depor. A PM tirou a vida de uma pessoa trabalhadora", disse Marcelo Pereira, 31, genro de Nair e um dos mais revoltados no enterro, que atraiu ontem cerca de 300 pessoas ao cemitério São João Batista, em Botafogo (zona sul).
A Folha não conseguiu falar com o comandante do 23º Batalhão de Polícia Militar, tenente-coronel Renato Fialho.
Nair tinha três filhos e quatro netos. Seu quarto filho, Vágner, morreu há três anos, com 27, de leucemia, e era portador da síndrome de Down. Ontem, o caminhoneiro Vítor Costa, 70, teve que autorizar a retirada dos restos do filho morto para dar lugar ao corpo de sua mulher.
Costa, assim como suas filhas Denise, 39, e Rosemary, 38, precisaram tomar calmantes durante o enterro de Nair e mal conseguiam falar. Denise, aos prantos, gritava debruçada sobre o caixão: "Por que fizeram isso com minha mãe? Uma mulher boa!".
O sentimento de revolta dos amigos e parentes se misturava ao de incompreensão. Mulher que sempre trabalhou muito para criar os filhos, segundo os relatos, Nair morreu por causa de uma guerra que não existiu durante a maior parte de sua vida passada no Vidigal: policiais contra traficantes de drogas.
"O Vidigal era um lugar muito bom, mas a violência está demais. A gente só não sai porque não tem condições", afirmou uma mulher, que não quis se identificar, moradora há 50 anos no morro.
A família Oliveira Costa deve deixar de vez o lugar em que vive há mais de 72 anos. A mãe da costureira -ainda viva e presente no enterro- já morava havia alguns anos no morro do Vidigal quando nasceu Nair.
"Vou tentar tirar meu pai de lá", disse, chorando muito, Vítor, 40, o primogênito de Nair. Como os filhos já foram para outros bairros, o casal morava no Vidigal apenas com o mais velho dos quatro netos, também Vítor, 15.
"Ele foi morar com a avó depois da morte do Vágner, porque ela ficou muito triste. Mas agora vai ficar comigo, na Freguesia [zona oeste]. A última coisa que eu quero é que ele cresça no Vidigal", afirmou Rosemary da Silva, mãe do adolescente e ex-nora de Nair.
Como homenagem a Nair e à sua filha, a professora Rosemary, a Stella Maris, tradicional escola para alunos de classe média na parte baixa do Vidigal, não funcionou ontem à tarde. Mas a condenação dos culpados é a homenagem maior que os parentes desejam dar a Nair. "Queremos justiça", afirmou ontem o filho Vítor.


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