São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Por que o Brasil não explode?

Faz dez anos que o desemprego cresce, a renda do trabalhador cai e o mercado informal, em que não há direitos trabalhistas, prospera impunemente.
Na sexta-feira, estatísticas oficiais reforçaram o quadro de más notícias: o desemprego bateu recorde para um mês de janeiro e a produção no primeiro ano de mandato do primeiro presidente operário sofreu contração -só não foi pior, mesmo assim por pouco, do que em 1992, quando o país estava metido numa crise institucional com o impeachment de Fernando Collor.
Por que com tantas más notícias por tanto tempo o Brasil não explode, com revoltas de rua e paralisações? Afinal, duas décadas atrás, os civis recuperaram o poder, prometendo mais empregos e mais salários, e o que se vê, nas regiões metropolitanas, é a multiplicação dos marginais e dos marginalizados.

 

Um dos fatores dessa razoável calmaria política, jamais reconhecido por Lula, pelo PT e pela maioria dos formadores de opinião -seja por ignorância, seja por manipulação-, é o seguinte: nunca se distribuiu tanto dinheiro para os pobres. Ainda não nos demos conta da extensão desse anestésico social e de seus efeitos políticos.
Desde a década de 90, disseminaram-se programas de transferência de renda, motivados pela nova Constituição. Não é exagero afirmar que ninguém, nem mesmo o mais gabaritado técnico, sabe informar quantas pessoas são beneficiárias desses recursos federais, estaduais e municipais, sem contar os projetos que envolvem o chamado terceiro setor.
 

Há relatórios oficiais que afirmam que, apenas no plano federal, são distribuídos 48 milhões de benefícios das mais variadas formas, alguns dos quais a partir de R$ 7. Exagero?
Só a aposentadoria rural chega a quase 6,8 milhões de pessoas, ajudando a manter famílias no campo; 824 mil idosos e portadores de deficiência ganham um salário mínimo mensal; 700 mil crianças ganham uma renda para não trabalharem; 3,6 milhões de brasileiros recebem a bolsa-família, o que atinge pelo menos 11 milhões de pessoas.
Isso sem contar os remanescentes de outros programas (Bolsa-Escola, Vale-Gás, Cartão-Alimentação e Bolsa-Alimentação) ainda não incorporados ao Bolsa-Família. E não é só.
 

São encontrados programas de transferência de renda, com verbas estaduais e municipais, em Goiás, no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, em Mato Grosso do Sul, no Acre, no Amazonas, em Roraima, no Amapá e no Pará. No caso de São Paulo, existem, além de recursos estaduais, programas de cidades importantes, como Santo André, Campinas e Ribeirão Preto. Somente no município de São Paulo há 300 mil famílias atendidas.
Técnicos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) comentam que tanta gente atendida compõe, nesse caótico desenho, um dos maiores programas de transferência de renda, via governo, do mundo.
O que Lula não sabe, não quer saber, ou sabe e finge que não sabe é que talvez ele ajude mesmo a fazer "um dos maiores programas sociais da Terra", como disse em mais um de seus improvisos, na quinta-feira. E isso é verdade não só por causa da sua atuação mas devido a essa profusão de projetos da década de 90.
 

Além dos vários programas de renda mínima, pelo menos mais um fator engordou o colchão social brasileiro: a merenda escolar, um benefício que também pode ser traduzido como transferência de renda.
As décadas de 80 e 90 aceleraram a universalização do ensino fundamental, o que pode não ter significado a melhoria da qualidade da educação, mas significou dezenas de milhões de crianças e adolescentes comendo na escola.
Em vários municípios, apesar de lentamente, aumenta o número de crianças na pré-escola e nas creches. Em outras palavras, mais comida para a família.
 

O problema hoje é menos o número de pessoas a serem atingidas -o que dá manchete- e mais a forma de gerenciar melhor os recursos que já são distribuídos. Estão em questão os meios de ajustar o foco dos investimentos, de avaliar o impacto desses benefícios e de abrir portas de saída para que não se institucionalize a mendicância.
A verdade é que a gestão dos programas em si, sempre intrincada, complexa e de pouca visibilidade, não chama a atenção dos eleitores -nem, vamos reconhecer, da imprensa.
 

Bolsas são apenas e tão-somente um anestésico, cujo efeito se dilui se não há crescimento econômico.
Mas até quando vai durar esse anestésico? Não faço a menor idéia -aliás, ninguém faz idéia. Só sei que não é para sempre. Se a renda continuar caindo, o desemprego aumentando e o mercado de trabalho se informalizando, Lula não vai acabar seu mandato tranqüilamente.
É compreensível que ele tenha prometido, nesta semana, mais 800 mil bolsas-famílias nas regiões metropolitanas, onde se combinam muitos votos e poucos empregos.
 

PS - Por falar em avanços na educação, o Rio de Janeiro é a cidade que está na vanguarda educacional no que se refere à pré-escola. A seguir o ritmo de matrículas, o Rio de Janeiro será, no próximo ano, a primeira grande cidade do país a universalizar a pré-escola. É viável: a taxa de matrícula já está em 75% da população de quatro a seis anos. Quanto mais for gasto hoje em educação infantil, menos será gasto, no futuro, em bolsas. Educação infantil é, disparado, o melhor investimento contra a mendicância institucional.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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