São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EPIDEMIA INVISÍVEL 2
Vítima de suicídio é cada vez mais jovem

do Conselho Editorial e
da Reportagem Local

Sentado diante de psicólogas do Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, no Jabaquara (São Paulo), mês passado, um menino de 10 anos explicou calmamente como tinha tentado, poucas horas antes, se matar.
Transtornado porque o pai parou de visitá-lo devido à gravidez da nova mulher, ele entrou no banheiro de sua casa, retirou um dos cadarços do tênis, fez um laço e envolveu-o no pescoço.
Teve o cuidado de checar se o nó estava firme. Amarrou o cadarço improvisado de forca no alto da porta. Sem hesitar e antes que alguém aparecesse, projetou-se no ar, encolhendo as pernas.
Num tom calmo e seguro, contou que estava decidido a não gritar por socorro. Sua mãe, porém, ouviu um barulho estranho, chamou o filho e não ouviu resposta. Chegou a tempo de desatar a forca.
As psicólogas estavam impressionadas, em particular, com a frieza do menino. Em nenhum momento demonstrou arrependimento, apenas achava que a vida tinha perdido sentido e o melhor alívio seria acabar logo com tudo.
"Tenho 25 anos de psiquiatria, trabalho em diferentes hospitais e noto que não apenas aumenta o número de casos, mas cai a idade das vítimas", afirma Frederico Carvalho, coordenador de saúde mental do Hospital Saboya.
É o mesmo que pensa um dos mais respeitados psiquiatras infantis do país, Haim Gruspun, responsável por uma clínica em São Paulo que reúne, além de psiquiatras, psicólogos e psicopedagogos.
"Tem piorado ano a ano", afirma Gruspun, vendo uma onda crescente de estresse, frustração e depressão entre jovens e crianças.
O Hospital Saboya é um ponto estratégico. Lá está um dos principais centros do país de prevenção e tratamento contra vítimas de intoxicação - serve, portanto, de alarme sobre os níveis de suicídio.
Os médicos comentam, atônitos, sobre as estatísticas. O chefe do centro de intoxicação, Sérgio Graff, conta que, certa vez, tratou de um menino de 5 anos que chegou intoxicado devido ao consumo excessivo de medicamentos.
"Perguntei o que tinha acontecido, esperava ouvir como resposta distração ou coisa parecida. Mas ele disse que tinha tentado se matar", relembra Sérgio Graff.
Cinco anos de idade é pouco, mas não é o recorde. Em janeiro passado, foi atendida no Saboya uma menina de 4 anos.
Na faixa dos 10 aos 14 anos, os prontuários indicam a média de um caso por dia; de 15 a 19 anos, dois casos diários.
"Estamos diante de um grave problema de saúde pública, desconhecido de pais, professores e, pior, governantes", critica o pediatra Anthony Wong, chefe do Centro de Assistência Toxicológica da USP (Ceatox).
Reflexo da falta de preocupação nacional, as estatísticas são falhas e incompletas. É unânime a opinião entre os especialistas de que se capta nos registros oficiais uma pequena amostragem.
O psiquiatra Antonio Egidio Nardi, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP/UFRJ), autor do livro "Questões Atuais Sobre Depressão", acredita que a taxa anual de suicídio real seja o dobro da oficial, estimada em 7,2 casos por 100 mil habitantes.
Desinformação e ignorância são misturadas ao preconceito. Ter seu nome vinculado à depressão ou, pior, à tentativa de suicídio, é um estigma capaz de barrar a entrada no mercado de trabalho.
É o círculo vicioso. Tenta-se o suicídio como uma forma de fugir da marginalização e da incompreensão, mas se acaba mais marginalizado e incompreendido.
A imensa maioria daqueles que tentam não querem, de fato, se matar. Daí que as mortes sejam inferiores ao número de tentativas.
O próprio Wong alertou pais cujos filhos demonstravam sinais de perturbação psicológica. "Eles não ouviam, negavam, e depois soube que os filhos morreram de algum tipo de overdose", lamenta.
"A verdade é que a imensa maioria das pessoas, mesmo as mais informadas, acham que uma criança não tem razões para se matar. Afinal, estão livres dos problemas", constata Sônia Friedrich, a primeira psiquiatra a fazer uma investigação sobre o suicídio infantil, quando trabalhava no Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Pais sentem vergonha de revelar a crise emocional dos filhos, tentativas de suicídio são mascaradas como acidentes, hospitais privados não fazem registro a pedido da família ou porque o seguro não paga esse tipo de internação.
Com ajuda de psicólogos, Gruspun investigou o passado de jovens que morreram afogados. Testou as circunstâncias do afogamento, entrevistou famílias. "Descobrimos que muitos deles se suicidaram", garante.
"Pode multiplicar por várias vezes os números oficiais", sugere Rosany Bochner, responsável pelo setor de estatística do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicos (Sinitox).
O país tem apenas 30 centros de controle, todos com dificuldades de captação de dados.
Todos os indicadores disponíveis apontam, porém, para um aumento crescente de casos.
Desde 1991, Anthony Wong monta a estatística mais completa do país. Em todas as faixas de idade, constata-se crescimento. Entre 15 e 19 anos, em 1993, por exemplo, eram 102 casos. Pouco menos do que nos primeiros seis meses do ano passado. (GILBERTO DIMENSTEIN E MARCELO OLIVEIRA)


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.