|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
A paixão redigida
Tecelã usa serviço "Escreve cartas" para dar notícias ao irmão: programa gratuito lançado ontem em São Paulo oferece auxílio para analfabetos. Cotidiano, 23.out.2001
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Ela queria mandar uma
carta para o irmão, e foi assim que Jorge a ficou conhecendo:
era empregado de um serviço que
prestava ajuda a pessoas iletradas. Não era bem o que gostaria
de fazer; na verdade, seu sonho
era tornar-se escritor, e tinha até
um romance na gaveta, uma melancólica história de amor que os
editores sistematicamente haviam recusado. Assim, para prover o pão de cada dia, aceitara
aquela tarefa. Até então se desempenhara com burocrática eficiência, procurando não tomar
conhecimento dos dramas que se
revelavam em cada missiva.
Mas a mulher, por alguma razão, captou sua simpatia. Escrita
a carta, ela voltou muitas vezes;
aparentemente era apegada
àquele distante irmão, a quem
contava tudo. Jorge, como um bíblico escriba, ia registrando tudo.
Um dia ela lhe fez um pedido surpreendente: queria que ele escrevesse uma carta de amor. Jorge
estranhou: até então ela não falara em namorado, muito menos
em namorado distante. Mas ele
estava ali para atender a solicitações, não para investigar a vida
alheia. Perguntou a quem se dirigia a carta. Ela não entendeu: como, a quem? Preciso saber o nome da pessoa a quem você vai escrever, explicou. Ela hesitou, embaraçada; por fim, decidiu:
- Deixe em branco o lugar para o nome.
Foi o que ele fez. Mas isso não
resolvia o problema: ela confessou
que nunca tinha escrito uma carta de amor, que não sabia o que
dizer. Jorge tratou de ajudá-la:
abra seu coração, fale de seus sentimentos, imagine aquilo que você diria se ele estivesse perto de
você.
E ela falou. Abriu o coração, como ele tinha recomendado. Foi
como se uma represa se abrisse,
deixando escapar uma torrente
incontrolável de emoções: você é
tudo para mim, eu não posso viver sem você, eu preciso de você.
Jorge chegou a ficar perturbado.
Pela primeira vez estava vendo a
tecelã como uma mulher. E não
era feia ela, era até bem bonita,
com um rosto doce, ainda que
vincado pelo sofrimento.
Terminou de escrever, entregou-lhe o papel, ela agradeceu e
foi embora. No dia seguinte, ao
chegar para o trabalho, ele encontrou sobre sua mesa um envelope.
Abriu-o, e ali estava a carta que
tinha escrito. Agora com destinatário. Em letras trêmulas, hesitantes, estava o nome que ela,
sem dúvida, tinha copiado da
plaqueta que, sobre a mesa, o
identificava: Jorge.
Nunca mais voltou. Mas ele tem
esperança de encontrá-la. Quer
que ela lhe ensine como se escreve
sobre o amor.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Trânsito: Rua na zona norte recebe mão única Índice
|