São Paulo, segunda-feira, 29 de outubro de 2001

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MOACYR SCLIAR

A paixão redigida

Tecelã usa serviço "Escreve cartas" para dar notícias ao irmão: programa gratuito lançado ontem em São Paulo oferece auxílio para analfabetos. Cotidiano, 23.out.2001

 

Ela queria mandar uma carta para o irmão, e foi assim que Jorge a ficou conhecendo: era empregado de um serviço que prestava ajuda a pessoas iletradas. Não era bem o que gostaria de fazer; na verdade, seu sonho era tornar-se escritor, e tinha até um romance na gaveta, uma melancólica história de amor que os editores sistematicamente haviam recusado. Assim, para prover o pão de cada dia, aceitara aquela tarefa. Até então se desempenhara com burocrática eficiência, procurando não tomar conhecimento dos dramas que se revelavam em cada missiva.
Mas a mulher, por alguma razão, captou sua simpatia. Escrita a carta, ela voltou muitas vezes; aparentemente era apegada àquele distante irmão, a quem contava tudo. Jorge, como um bíblico escriba, ia registrando tudo. Um dia ela lhe fez um pedido surpreendente: queria que ele escrevesse uma carta de amor. Jorge estranhou: até então ela não falara em namorado, muito menos em namorado distante. Mas ele estava ali para atender a solicitações, não para investigar a vida alheia. Perguntou a quem se dirigia a carta. Ela não entendeu: como, a quem? Preciso saber o nome da pessoa a quem você vai escrever, explicou. Ela hesitou, embaraçada; por fim, decidiu:
- Deixe em branco o lugar para o nome.
Foi o que ele fez. Mas isso não resolvia o problema: ela confessou que nunca tinha escrito uma carta de amor, que não sabia o que dizer. Jorge tratou de ajudá-la: abra seu coração, fale de seus sentimentos, imagine aquilo que você diria se ele estivesse perto de você.
E ela falou. Abriu o coração, como ele tinha recomendado. Foi como se uma represa se abrisse, deixando escapar uma torrente incontrolável de emoções: você é tudo para mim, eu não posso viver sem você, eu preciso de você. Jorge chegou a ficar perturbado. Pela primeira vez estava vendo a tecelã como uma mulher. E não era feia ela, era até bem bonita, com um rosto doce, ainda que vincado pelo sofrimento.
Terminou de escrever, entregou-lhe o papel, ela agradeceu e foi embora. No dia seguinte, ao chegar para o trabalho, ele encontrou sobre sua mesa um envelope. Abriu-o, e ali estava a carta que tinha escrito. Agora com destinatário. Em letras trêmulas, hesitantes, estava o nome que ela, sem dúvida, tinha copiado da plaqueta que, sobre a mesa, o identificava: Jorge.
Nunca mais voltou. Mas ele tem esperança de encontrá-la. Quer que ela lhe ensine como se escreve sobre o amor.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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