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LETRAS JURÍDICAS
A cidadania não confia no Estado
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
O leitor que se lembrar de
coluna saída em meados de
setembro, com o mesmo título de
hoje, mostrará boa memória. Eu
o repito porque os resultados do
referendo do último domingo o
confirmam inteiramente.
O verdadeiro sentido do título
exige, porém, que não confundamos o significado dos vocábulos
governo, nação e Estado. O Estado é a nação organizada com seu
governo e o conjunto de serviços
da administração pública, a bem
do povo, do qual emana todo o
poder. O resultado esmagador do
"não" mostra que o povo não
confia no Estado, no exercício dos
poderes correspondentes, em todos os níveis e em seus servidores,
do menor município ao governo
federal.
A grande desconfiança nasce da
incapacidade estatal de preservar
a segurança de cada cidadão ou
cidadã. Não é só. As deficiências
do Estado brasileiro transcendem
do atual governo ou dos últimos
governos. Estão nas áreas da saúde (com o SUS e o INSS a tiracolo), da seguridade social, da proteção à família, com as insuficiências da educação oficial, como
um de seus subprodutos. O "sim"
suprimiria o direito da livre escolha, atingindo mais quem tem
menos direito. A indiferença oficial pelas garantias dos direitos
individuais e do trabalho e o fraco
interesse pela proteção dos direitos sociais pelos governantes geraram o furacão da resposta
popular.
Os governos proclamam progressos na segurança interna,
mais diretamente na vida urbana. Manejam estatísticas cuja
correspondência não é encontrada pelo homem da rua na realidade concreta. A insegurança é
de todos -ricos, pobres e remediados. Dos cultos e incultos. Cada vez mais ameaçados pela ousadia dos delinqüentes, contraposta à ineficácia dos organismos
policiais. Ineficácia embora se reconheça que houve melhoras do
atendimento demorado ou descortês da vítima que vai queixar-se. Ou, como já aconteceu com
gente de meu escritório, quando
perguntado ao servidor público se
seria caso de verificar impressões
digitais depois de um furto, veio a
resposta irônica: "Vocês estão
vendo muito filme de televisão!"
Sem o cuidado com a mãe de família, a infância e a juventude,
sem preservar a segurança, sem
amparo das instituições, aí incluída a eficácia e a qualidade do Poder Judiciário, a imposição do desarmamento obrigatório seria
inaceitável, nem que fosse constitucional.
A criminalidade crescente exigiria, em outro ângulo de visão, o
aprimoramento das condições de
trabalho dos policiais, da remuneração e das garantias correspondentes. A investigação qualificada não dispensa políticas de
seleção de pessoal para objetivos
de prevenção, entre os quais a do
conhecimento das lideranças criminosas e de seu controle, antes
das medidas de persecução e punição, sem falar nos anos de demora, até o julgamento. As deficiências são amargadas pela carga tributária, cada vez maior e de
duvidosa aplicação correta.
Das lições a tirar do referendo,
talvez a mais importante seja reconhecer que o grito do "não"
mostra o Estado desmerecedor da
confiança do brasileiro.
No que refere às armas, o Estatuto do Desarmamento deve ser
respeitado, mas seu enfoque neste
momento não é preferencial. O
referendo foi o marco fincado na
história constitucional do Brasil.
Não sei prever como será compreendido e aplicado. Penso, porém, que, na dinâmica inexorável
do futuro, será útil a primorosa
previsão poética de Lulu Santos e
Nelson Motta: "Tudo muda o
tempo todo no mundo. Não
adianta fugir, nem mentir pra si
mesmo. Agora, há tanta vida lá
fora, aqui dentro, sempre, como
uma onda no mar". Quem a compreender, pegará a onda do povo.
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