São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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LETRAS JURÍDICAS

A cidadania não confia no Estado

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O leitor que se lembrar de coluna saída em meados de setembro, com o mesmo título de hoje, mostrará boa memória. Eu o repito porque os resultados do referendo do último domingo o confirmam inteiramente.
O verdadeiro sentido do título exige, porém, que não confundamos o significado dos vocábulos governo, nação e Estado. O Estado é a nação organizada com seu governo e o conjunto de serviços da administração pública, a bem do povo, do qual emana todo o poder. O resultado esmagador do "não" mostra que o povo não confia no Estado, no exercício dos poderes correspondentes, em todos os níveis e em seus servidores, do menor município ao governo federal.
A grande desconfiança nasce da incapacidade estatal de preservar a segurança de cada cidadão ou cidadã. Não é só. As deficiências do Estado brasileiro transcendem do atual governo ou dos últimos governos. Estão nas áreas da saúde (com o SUS e o INSS a tiracolo), da seguridade social, da proteção à família, com as insuficiências da educação oficial, como um de seus subprodutos. O "sim" suprimiria o direito da livre escolha, atingindo mais quem tem menos direito. A indiferença oficial pelas garantias dos direitos individuais e do trabalho e o fraco interesse pela proteção dos direitos sociais pelos governantes geraram o furacão da resposta popular.
Os governos proclamam progressos na segurança interna, mais diretamente na vida urbana. Manejam estatísticas cuja correspondência não é encontrada pelo homem da rua na realidade concreta. A insegurança é de todos -ricos, pobres e remediados. Dos cultos e incultos. Cada vez mais ameaçados pela ousadia dos delinqüentes, contraposta à ineficácia dos organismos policiais. Ineficácia embora se reconheça que houve melhoras do atendimento demorado ou descortês da vítima que vai queixar-se. Ou, como já aconteceu com gente de meu escritório, quando perguntado ao servidor público se seria caso de verificar impressões digitais depois de um furto, veio a resposta irônica: "Vocês estão vendo muito filme de televisão!"
Sem o cuidado com a mãe de família, a infância e a juventude, sem preservar a segurança, sem amparo das instituições, aí incluída a eficácia e a qualidade do Poder Judiciário, a imposição do desarmamento obrigatório seria inaceitável, nem que fosse constitucional.
A criminalidade crescente exigiria, em outro ângulo de visão, o aprimoramento das condições de trabalho dos policiais, da remuneração e das garantias correspondentes. A investigação qualificada não dispensa políticas de seleção de pessoal para objetivos de prevenção, entre os quais a do conhecimento das lideranças criminosas e de seu controle, antes das medidas de persecução e punição, sem falar nos anos de demora, até o julgamento. As deficiências são amargadas pela carga tributária, cada vez maior e de duvidosa aplicação correta.
Das lições a tirar do referendo, talvez a mais importante seja reconhecer que o grito do "não" mostra o Estado desmerecedor da confiança do brasileiro.
No que refere às armas, o Estatuto do Desarmamento deve ser respeitado, mas seu enfoque neste momento não é preferencial. O referendo foi o marco fincado na história constitucional do Brasil. Não sei prever como será compreendido e aplicado. Penso, porém, que, na dinâmica inexorável do futuro, será útil a primorosa previsão poética de Lulu Santos e Nelson Motta: "Tudo muda o tempo todo no mundo. Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo. Agora, há tanta vida lá fora, aqui dentro, sempre, como uma onda no mar". Quem a compreender, pegará a onda do povo.


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