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CARANDIRU SEM FILTRO
Livro de presidiários do megacomplexo carcerário traz relatos crus da prisão e da criminalidade
Detentos traçam radiografia do inferno
EDNEY CIELICI DIAS
COORDENADOR-ADJUNTO DO PROGRAMA DE QUALIDADE
Faz sol no pátio do Pavilhão 6.
Os autores-detentos estão ansiosos para tocar a obra impressa. O
funcionário da Casa de Detenção
faz suspense. Afugenta os mais
afoitos, que tentam xeretar o pacote. São livros, mas eles agem como se fossem doces. Eles tiveram
voz, pois escreveram o que quiseram. Será que vão ter vez?
"Letras de Liberdade", a obra
coletiva, reúne 15 relatos de detentos de um complexo presidiário gigantesco. A Casa de Detenção (7.200), a Penitenciária do Estado (2.300) e a Penitenciária Feminina (500) têm, juntas, em torno de 10 mil presos.
Hoje acontece o lançamento
oficial do livro. Hoje também se
inicia o julgamento do coronel
Ubiratan Guimarães, que comandou, em 92, a tropa de choque no
massacre de 111 presos no Pavilhão 9 do mesmo presídio.
Volta o pátio. Os autores continuam ansiosos. Não sabem de seu
sucesso. Os 15 mil exemplares da
primeira edição estão vendidos.
Eles terão participação de 10% do
preço de capa mais dez exemplares e uma cesta básica.
Apenas seis escritores e dois
ilustradores, também detentos,
aguardam. Alguns participantes
foram transferidos. Os dois do 7
não puderam vir, pois o pavilhão
está fechado. As mulheres, da Penitenciária Feminina, não tinham
autorização; outros preferiram,
simplesmente, não aparecer.
"Não temos medo de mostrar a
realidade, temos de mostrar o que
acontece", diz o diretor da Casa
de Detenção, Mauricio Guarnieri,
em seu escritório. "É importante
para eles a ligação com o mundo
exterior. Gostei do livro."
Drauzio Varella, médico, colunista da Folha e autor de "Estação
Carandiru", best seller que trouxe
ao público o dia-a-dia do presídio, também acha isso: "Ocupa
quem está lá. Eles podem descobrir um outro mundo".
No pátio, os presos finalmente
recebem o livro. Parecem exultantes, mas zelosos. Olham atentamente a obra. Não demora muito e passam a reclamar de defeitos
com o representante da editora.
"Você tá vendo aqui? Saiu errado o nome da minha tia", diz Carlos, condenado a 13 anos por assalto a mão armada e furto. Mas
ele está contente. HIV positivo,
diz que o livro o ajudou a melhorar a saúde e a abandonar a droga.
José Heleno da Silva, ilustrador,
pergunta se é normal o nome dele
aparecer pequeno, do lado de seu
desenho. Explica-se que sim, que
é normal. Ele se afasta feliz.
Jones Jesus Rodrigues, condenado a 48 anos (homicídio/assalto a mão armada/furto), foi o único autor que tratou do massacre
de 92. Fez isso como um Edgar
Allan Poe possível no Carandiru.
O assaltante que traiu o companheiro é executado no massacre.
Suas cinzas são jogadas no mesmo poço em que havia enterrado
o parceiro e o roubo. "É porque
ele errou", explica.
"Qual o crime que você não cometeu?" é a pergunta que se faz
aos detentos do Carandiru. De
certa forma, todos se consideram
inocentes.
Assim, o que esperar de histórias contadas livremente por presidiários? Seria possível, dentro de
um ambiente brutal e absurdo,
distinguir o real da ficção? Numa
sociedade em que a violência se
banalizou, toda barbaridade passa a ser, se não verdadeira, verossímil. Se não aconteceu, poderia
ter acontecido.
O detento Carlos Alberto da Silva Gomes, 41, que responde por
furto e homicídio (em julgamento), conta uma história em que se
diz vítima de uma trama. Compara sua situação ao caso da Escola
Base e do crime do bar Bodega,
em que existiram acusações graves que se mostraram infundadas.
Cabe à Justiça decidir.
Os textos foram selecionados
entre 345 concorrentes. Wagner
Veneziani Costa, o editor, diz que
se procurou selecionar as histórias com mais apelo e as narrativas mais bem escritas.
Os relatos são, em geral, autobiográficos e vêm acompanhados
de posfácios analíticos. Os autores
desses comentários são, entre outros nomes conhecidos, os escritores Fernando Bonassi e Ignácio
de Loyola Brandão, o psiquiatra
Paulo Gaudêncio, o advogado e
membro da Anistia Internacional
Ives Gandra da Silva Martins, o
padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, o compositor Lobão e o jornalista Ruy Castro.
Livro: "Letras de Liberdade"
Autor: vários
Editora: WB Editores
Quanto: R$ 20 (200 págs.)
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