São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2000

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CARANDIRU SEM FILTRO
Livro de presidiários do megacomplexo carcerário traz relatos crus da prisão e da criminalidade
Detentos traçam radiografia do inferno

EDNEY CIELICI DIAS
COORDENADOR-ADJUNTO DO PROGRAMA DE QUALIDADE

Faz sol no pátio do Pavilhão 6. Os autores-detentos estão ansiosos para tocar a obra impressa. O funcionário da Casa de Detenção faz suspense. Afugenta os mais afoitos, que tentam xeretar o pacote. São livros, mas eles agem como se fossem doces. Eles tiveram voz, pois escreveram o que quiseram. Será que vão ter vez?
"Letras de Liberdade", a obra coletiva, reúne 15 relatos de detentos de um complexo presidiário gigantesco. A Casa de Detenção (7.200), a Penitenciária do Estado (2.300) e a Penitenciária Feminina (500) têm, juntas, em torno de 10 mil presos.
Hoje acontece o lançamento oficial do livro. Hoje também se inicia o julgamento do coronel Ubiratan Guimarães, que comandou, em 92, a tropa de choque no massacre de 111 presos no Pavilhão 9 do mesmo presídio.
Volta o pátio. Os autores continuam ansiosos. Não sabem de seu sucesso. Os 15 mil exemplares da primeira edição estão vendidos. Eles terão participação de 10% do preço de capa mais dez exemplares e uma cesta básica.
Apenas seis escritores e dois ilustradores, também detentos, aguardam. Alguns participantes foram transferidos. Os dois do 7 não puderam vir, pois o pavilhão está fechado. As mulheres, da Penitenciária Feminina, não tinham autorização; outros preferiram, simplesmente, não aparecer.
"Não temos medo de mostrar a realidade, temos de mostrar o que acontece", diz o diretor da Casa de Detenção, Mauricio Guarnieri, em seu escritório. "É importante para eles a ligação com o mundo exterior. Gostei do livro."
Drauzio Varella, médico, colunista da Folha e autor de "Estação Carandiru", best seller que trouxe ao público o dia-a-dia do presídio, também acha isso: "Ocupa quem está lá. Eles podem descobrir um outro mundo".
No pátio, os presos finalmente recebem o livro. Parecem exultantes, mas zelosos. Olham atentamente a obra. Não demora muito e passam a reclamar de defeitos com o representante da editora.
"Você tá vendo aqui? Saiu errado o nome da minha tia", diz Carlos, condenado a 13 anos por assalto a mão armada e furto. Mas ele está contente. HIV positivo, diz que o livro o ajudou a melhorar a saúde e a abandonar a droga.
José Heleno da Silva, ilustrador, pergunta se é normal o nome dele aparecer pequeno, do lado de seu desenho. Explica-se que sim, que é normal. Ele se afasta feliz.
Jones Jesus Rodrigues, condenado a 48 anos (homicídio/assalto a mão armada/furto), foi o único autor que tratou do massacre de 92. Fez isso como um Edgar Allan Poe possível no Carandiru. O assaltante que traiu o companheiro é executado no massacre. Suas cinzas são jogadas no mesmo poço em que havia enterrado o parceiro e o roubo. "É porque ele errou", explica.
"Qual o crime que você não cometeu?" é a pergunta que se faz aos detentos do Carandiru. De certa forma, todos se consideram inocentes.
Assim, o que esperar de histórias contadas livremente por presidiários? Seria possível, dentro de um ambiente brutal e absurdo, distinguir o real da ficção? Numa sociedade em que a violência se banalizou, toda barbaridade passa a ser, se não verdadeira, verossímil. Se não aconteceu, poderia ter acontecido.
O detento Carlos Alberto da Silva Gomes, 41, que responde por furto e homicídio (em julgamento), conta uma história em que se diz vítima de uma trama. Compara sua situação ao caso da Escola Base e do crime do bar Bodega, em que existiram acusações graves que se mostraram infundadas. Cabe à Justiça decidir.
Os textos foram selecionados entre 345 concorrentes. Wagner Veneziani Costa, o editor, diz que se procurou selecionar as histórias com mais apelo e as narrativas mais bem escritas.
Os relatos são, em geral, autobiográficos e vêm acompanhados de posfácios analíticos. Os autores desses comentários são, entre outros nomes conhecidos, os escritores Fernando Bonassi e Ignácio de Loyola Brandão, o psiquiatra Paulo Gaudêncio, o advogado e membro da Anistia Internacional Ives Gandra da Silva Martins, o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, o compositor Lobão e o jornalista Ruy Castro.

Livro: "Letras de Liberdade"
Autor: vários
Editora: WB Editores
Quanto: R$ 20 (200 págs.)


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