|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANUZA LEÃO
Viver, a qualquer momento
De vez em quando a gente
ouve -em momentos dolorosos, sobretudo- a frase solidária "sei exatamente como você
está se sentindo". A vontade é
dizer, e com muita raiva, "não
sabe não", mas por amizade, fraternidade e uma certa preguiça,
a gente finge que não ouve e passa
batido.
Se seu marido te largou -e o de
sua amiga também-, nem por
isso ela pode saber o que você está
sentindo. Pode ser raiva, ódio, dor
de cotovelo, alívio, vontade de
enfiar uma faca nas costas dele e
até mesmo a sensação, rara, de
generosidade, pensando que ele
tem o direito de procurar ser feliz
longe de você. As circunstâncias
são sempre diferentes, e reza a
sabedoria que, se esse fato desagradável te aconteceu, fuja do
clube das mulheres largadas,
aquelas que só têm um assunto,
até arranjar outro.
Tão insuportável quanto, são as
pessoas que dizem "eu conheço
você muito bem". Como assim,
conhece, se nem você mesma se
conhece?
Você se conhece? Tem um casamento tranqüilo, filhos sensatos e
não tem do que se queixar. Às vezes, quando está sozinha em casa,
se permite pensar que a vida podia ser mais trepidante, como em
alguns livros e filmes, e pensa: se
não tivesse se casado com um rapaz tão bom, que se tornou um
bom marido, como era de se prever, o que teria sido de sua vida?
Antigamente, na juventude, as
mulheres não tinham as liberdades de hoje; poucas trabalhavam,
morar sozinha nem pensar, e namoro era namoro -e só.
Naquele tempo, para ser livre
mesmo, só fugindo de casa, o que
algumas fizeram, para grande escândalo da cidade do interior onde viviam. Mas as moças daquele
tempo sabiam o que era a liberdade? Quantas queriam ser livres? E livres para quê?
Quando a família se reúne aos
domingos para almoçar, ela faz
os pratos prediletos dos filhos, tem
sempre um agrado especial para
os netos, é considerada uma mãe
exemplar e a avó que todos os netos gostariam de ter. A família inteira seria capaz de falar sobre
ela: de sua bondade, seu desprendimento, sua generosidade, sua
abnegação. Mas alguém sabe das
coisas que passaram -e que às
vezes ainda passam- pela sua
cabeça?
Nunca teve coragem de desejar
que o marido morresse, isso não.
Mas muitas vezes imaginou como
seria sua vida se ele desaparecesse, assim, numa mágica.
A primeira coisa que faria seria
cancelar os almoços de domingo;
pediria uma pizza e depois tomaria dois bons copinhos de vinho
do porto, aquele que a fazia ficar
um pouquinho tonta -só um
pouquinho. Veria os filhos e
netos, sim, mas eles que preparassem um jantar para ela, na casa
deles, com os pratos de que
mais gostava. E mais: sem dia
marcado.
Arranjaria novas amigas, algumas desquitadas, com muitas experiências para contar, daquelas
com quem não se dava porque
não ficava bem, e teria o direito
de dar uma boa gargalhada, coisa que talvez nunca tenha feito na
vida, já que nunca ninguém lhe
contou nenhuma história engraçada. Com ela só se fala de problemas, doenças, mortes.
Nesta manhã de domingo, enquanto o marido lia o jornal de
pijama, ela pensou em tudo isso.
E ficou imaginando: e se tivesse
coragem de sair de casa e ir passear num parque, conversasse
com outras pessoas tão sós como
ela, depois fosse a um cinema e só
voltasse quando já tivesse escurecido? Mas e o almoço familiar?
Pensou que existem dias em que é
imperioso transgredir, e o dia talvez fosse aquele.
Por força do hábito, ela iria
pensar nas conseqüências, mas,
nesse dia -o primeiro de sua longa vida-, não pensou. Saiu pela
porta dos fundos e foi viver sua
primeira aventura.
A polícia foi procurada, os hospitais, vasculhados, e às 11h da
noite ela chegou em casa. E quando, aflitos, perguntaram o que tinha acontecido, ela disse apenas:
"Fui viver".
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
Texto Anterior: Desconhecidos ganham nome e documentos Próximo Texto: Há 50 anos: Nos EUA, Jango deve receber homenagem Índice
|