São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante..."

"Raul Seixas teria completado 60 anos anteontem. O baiano Raulzito (era esse seu nome artístico no início da carreira) deixou algumas maravilhas, entre as quais a letra de "Metamorfose Ambulante", cujo início já foi tema de redação em alguns vestibulares. Se você não se lembra dos versos iniciais, lá vão eles: "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Deixemos de lado o aspecto temático desses instigantes versos e atenhamo-nos à questão gramatical, mais especificamente à regência do verbo "preferir", cujo significado -todos sabem- é "achar melhor", "gostar mais de", "escolher", "dar primazia a" etc. Nos versos de Raul, encontra-se a construção "preferir isto do que aquilo". As gramáticas e os dicionários de regência ensinam que, na escrita formal, esse verbo não se constrói com essa seqüência ("preferir X do que Y"). De acordo com os registros formais, a construção padrão é "preferir X a Y" ("Prefiro trem a ônibus"). Nesse território, não se registra o emprego de "preferir" ao lado de termos intensificadores ("prefiro mais", "prefiro muito mais", "prefiro mil vezes", "prefiro um milhão de vezes" etc.). A razão disso está na etimologia: em "preferir" se encontra o elemento latino "pre-", que contém noção de anterioridade, superioridade comparativa etc. Ao pé da letra, "preferir" significa "levar à frente", "pôr em primeiro lugar" etc. É por essa razão que construções como "Prefiro mais/muito mais" são consideradas redundantes. De fato, a construção "Preferir X a Y" é a predominante nos textos técnicos, jurídicos, filosóficos, acadêmicos etc. Nos vestibulares (Fuvest e companhia bela à frente), é sempre essa a construção apontada como correta e adequada à norma culta da língua. De acordo com esse preceito, os versos de Raul seriam assim escritos: "Prefiro ser essa metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Posto isso, convém tentar entender o mecanismo que leva o falante a empregar as construções que não encontram abrigo nas variedades formais da língua. Como bem diz Celso Luft em seu "Dicionário Prático de Regência Verbal", é justamente o obscurecimento do traço semântico presente na forma original do verbo (ou seja, a perda da noção do significado literal de "preferir") o que leva o falante a reavivar e a reforçar o sentido comparativo do verbo, com o emprego de expressões como "mais" e "do que". Não custa lembrar que esse mesmo processo de obscurecimento de traços semânticos originais levou o falante a criar formas que acabaram se consagrando na língua. Um belo exemplo disso é o pronome "comigo", que, ao pé da letra, significa "com me com". A forma "comigo" resulta de "com" + "migo". Por sua vez, a forma "migo" resulta da forma portuguesa arcaica "mego", que, por sua vez, resulta do latim "mecum" ("me" + "cum"). Como se vê, o apagamento da noção da preposição latina "cum" em "mego/migo" originou a nova inclusão da preposição "com". Feitas todas essas considerações, como ficamos em relação ao verbo "preferir"? Com a palavra, o professor Luft: "Mesmo assim, em linguagem culta formal cabe a sintaxe primária: preferir algo ou alguém a...". E viva Raul! É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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