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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Dançam Geraldo, Helena, Flor..."

"Na casa aberta / É noite de festa / Dançam Geraldo, Helena, Flor..." Desde que ganhei (da querida Juliana) o último disco de Milton Nascimento ("Pietá"), não me canso de ouvir "Casa Aberta", uma das maravilhas do álbum. O trecho que está no título desta coluna nos convida a refletir sobre o mecanismo de concordância verbal adotado pelo poeta mineiro Chico Amaral, autor dessa encantadora letra (a música é de Flávio Henrique).
O sujeito da oração destacada é composto ("Geraldo, Helena, Flor") e posposto, ou seja, posto depois do verbo. Em casos como esse, a norma escrita culta registra dois procedimentos: a) verbo no plural ("Caíram o governador e todos os secretários"); b) verbo em concordância com o núcleo mais próximo ("Caiu o governador e todos os secretários").
Quando existe a possibilidade de optar, convém ir além do puro e simples arrolamento das opções. É preciso analisar o que muda quando se escolhe "a" ou "b". No caso do sujeito composto posposto, a opção pela concordância do verbo com o primeiro núcleo do sujeito coloca em destaque esse elemento ("o governador", no exemplo dado). Se o verbo é posto no plural, valoriza-se o conjunto.
Em textos jornalísticos informativos, por exemplo, parece pouco provável a necessidade de enfatizar um dos elementos do sujeito composto posposto. Quem se dispuser a fazer o levantamento desses casos nas principais publicações do país certamente constatará que o verbo é posto no plural em praticamente 100% das situações. De fato, é pouco provável que se leia nesses veículos algo como "Participou do encontro o primeiro-ministro espanhol e o presidente dos Estados Unidos".
Posto isso, vamos voltar à opção de Chico Amaral em "Dançam Geraldo, Helena, Flor". O verbo poderia ter sido posto no singular, em concordância com o elemento mais próximo ("Geraldo")? Poderia. Teríamos isto: "Dança Geraldo, Helena, Flor". E qual seria o resultado disso? Seria a carga enfática para o dançar de Geraldo.
Para avaliar o que significaria a opção pela forma verbal "dança", é preciso levar em conta o contexto, a parte anterior da letra de Chico Amaral. Vamos a ela: "Lua luou, / Vento ventou, / Rio correu pro mar / Foi beijar / As areias de lá / Mato queimou, / Fogo apagou / O céu escureceu / Vem de lá, / Tambuzada no breu / Na casa aberta / É noite de festa / Dançam Geraldo, Helena, Flor...".
E então, caro leitor? Você acha que num ambiente em que tudo é festa (com todo o jeito de festa mineira, de cidade mineira do interior, coisa mais linda deste mundo de Deus!), da qual participam a natureza e os homens, faria sentido enfatizar o dançar de Geraldo, que se sobreporia ao de Helena e Flor? Certamente, não. Além de "democrática", a opção pelo plural impõe-se pelo contexto.
Por fim, não resisto à tentação de falar do belo efeito dos fluidos jobinianos (estes, por sua vez, de inspiração rosiana) presentes nos versos iniciais de "Casa Aberta" ("Lua luou / Vento ventou"): "É o vento ventando / (...) É a chuva chovendo (...) / É um pingo pingando" (de "Águas de Março", de Tom Jobim); "Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam..." (de "Fita Verde no Cabelo", de Guimarães Rosa). Evoé, caro Chico Amaral! É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
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