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PASQUALE CIPRO NETO
"Dançam Geraldo, Helena, Flor..."
"Na casa aberta / É noite
de festa / Dançam Geraldo, Helena, Flor..." Desde que ganhei (da querida Juliana) o último disco de Milton Nascimento
("Pietá"), não me canso de ouvir
"Casa Aberta", uma das maravilhas do álbum. O trecho que está
no título desta coluna nos convida a refletir sobre o mecanismo de
concordância verbal adotado pelo poeta mineiro Chico Amaral,
autor dessa encantadora letra (a
música é de Flávio Henrique).
O sujeito da oração destacada é
composto ("Geraldo, Helena,
Flor") e posposto, ou seja, posto
depois do verbo. Em casos como
esse, a norma escrita culta registra dois procedimentos: a) verbo
no plural ("Caíram o governador
e todos os secretários"); b) verbo
em concordância com o núcleo
mais próximo ("Caiu o governador e todos os secretários").
Quando existe a possibilidade
de optar, convém ir além do puro
e simples arrolamento das opções.
É preciso analisar o que muda
quando se escolhe "a" ou "b". No
caso do sujeito composto posposto, a opção pela concordância do
verbo com o primeiro núcleo do
sujeito coloca em destaque esse
elemento ("o governador", no
exemplo dado). Se o verbo é posto
no plural, valoriza-se o conjunto.
Em textos jornalísticos informativos, por exemplo, parece pouco
provável a necessidade de enfatizar um dos elementos do sujeito
composto posposto. Quem se dispuser a fazer o levantamento desses casos nas principais publicações do país certamente constatará que o verbo é posto no plural
em praticamente 100% das situações. De fato, é pouco provável
que se leia nesses veículos algo como "Participou do encontro o primeiro-ministro espanhol e o presidente dos Estados Unidos".
Posto isso, vamos voltar à opção
de Chico Amaral em "Dançam
Geraldo, Helena, Flor". O verbo
poderia ter sido posto no singular,
em concordância com o elemento
mais próximo ("Geraldo")? Poderia. Teríamos isto: "Dança Geraldo, Helena, Flor". E qual seria o
resultado disso? Seria a carga enfática para o dançar de Geraldo.
Para avaliar o que significaria a
opção pela forma verbal "dança",
é preciso levar em conta o contexto, a parte anterior da letra de
Chico Amaral. Vamos a ela: "Lua
luou, / Vento ventou, / Rio correu
pro mar / Foi beijar / As areias de
lá / Mato queimou, / Fogo apagou
/ O céu escureceu / Vem de lá, /
Tambuzada no breu / Na casa
aberta / É noite de festa / Dançam
Geraldo, Helena, Flor...".
E então, caro leitor? Você acha
que num ambiente em que tudo é
festa (com todo o jeito de festa mineira, de cidade mineira do interior, coisa mais linda deste mundo de Deus!), da qual participam
a natureza e os homens, faria sentido enfatizar o dançar de Geraldo, que se sobreporia ao de Helena e Flor? Certamente, não. Além
de "democrática", a opção pelo
plural impõe-se pelo contexto.
Por fim, não resisto à tentação
de falar do belo efeito dos fluidos
jobinianos (estes, por sua vez, de
inspiração rosiana) presentes nos
versos iniciais de "Casa Aberta"
("Lua luou / Vento ventou"): "É o
vento ventando / (...) É a chuva
chovendo (...) / É um pingo pingando" (de "Águas de Março", de
Tom Jobim); "Havia uma aldeia
em algum lugar, nem maior nem
menor, com velhos e velhas que
velhavam..." (de "Fita Verde no
Cabelo", de Guimarães Rosa).
Evoé, caro Chico Amaral! É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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