|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
As duas mortes de Vlado
O cineasta João Batista
Andrade entrevistou transeuntes na praça da Sé, em São
Paulo, para checar se alguém sabia quem foi Vladimir Herzog. O
desconhecimento era previsível
antes de qualquer pesquisa. Provavelmente, se fizessem as perguntas até no campus da USP, as respostas seriam constrangedoras.
Tema do filme de Batista Andrade, o assassinato do jornalista
nas dependências do DOI-Codi teve a importância de catalisar ainda mais a indignação contra o regime militar e estimular o processo de redemocratização. Neste ano
completam-se 30 anos do episódio
que, na época, recebeu a versão
oficial de suicídio. O tempo é uma
das explicações óbvias para o esquecimento.
Além da distância no tempo, o
esquecimento tem a ver com a ignorância do brasileiro sobre sua
história; aliás, a dificuldade já começa na leitura de um texto. O
pior de tudo, porém, é que a banalização da violência tornou, para
muita gente, aquele episódio algo
menor.
O resultado do referendo, na semana passada, é uma prova dessa
banalização: a nação, apavorada,
comprou a ilusão de que as pessoas armadas vão estar mais protegidas para se defender dos marginais.
O que vou escrever aqui pode parecer uma heresia política. A exposição do brasileiro à violência é
hoje maior, muitíssimo maior, do
que nos tempos do brutal assassinato de Herzog. Isso, óbvio, não se
presta nem remotamente a justificar um regime autoritário que, em
20 anos de existência, matou 300
pessoas, entre elas Herzog. Vamos
à incômoda comparação.
Na quinta-feira, foram divulgadas as mais recentes estatísticas
sobre os homicídios na cidade de
São Paulo: a média é de 194 vítimas por mês. Ou seja, em 45 dias,
apenas numa cidade, morreu a
mesma quantidade de pessoas do
que em 20 anos da ditadura militar.
Note-se que, desde 1985, não se
conseguia um índice de homicídios tão baixo. Se olharmos o ano
de 1998, quando a média mensal
-mais uma vez, apenas na cidade de São Paulo- era de 574, os
mortos do regime militar caberiam em míseros 15 dias.
Esse cálculo deve ser encarado
com várias cautelas. Um assassinato político tem diferentes implicações, porque é cometido pelo Estado, cuja missão é proteger o cidadão. Por trás dessa violência está em jogo toda uma concepção de
país em que não se respeitam os
mais elementares direitos, como o
de expressão.
Do ponto de vista, porém, da
vulnerabilidade individual, os números mostram uma guerra sem
trégua; a cada ano, 35 mil brasileiros são assassinados, a imensa
maioria deles jovens. De 1979 até
hoje, calcula-se que houve em torno de 700 mil os homicídios. Sem
contar os feridos.
Nem se pode dizer que o poder
público não continue torturando,
perseguindo e matando arbitrariamente. Por causa da indiferença, a elite não se sente perseguida
pela polícia -tais arbitrariedades
não provocam tanta indignação
como a perversidade dos militares.
Apesar das ilusões vendidas, no
referendo, da turma do "sim" e do
"não", saímos todos ganhando pelo simples motivo de que toda essa
mobilização ajudou a aprofundar
o debate sobre as causas da violência e enfrentá-la. O que tende a
aumentar a cobrança em cima
dos governantes.
A cobrança vai implicar, além
da melhoria da polícia, um esforço educacional constante e maior
eficiência de programas sociais.
Será inevitável que os poderes federais, estaduais e municipais, associados com a comunidade, concentrem-se nas áreas deflagradas,
transformadas em espécies de
guetos.
O talento de lideranças locais
em bolsões de violência, apoiados
no policiamento comunitário e
em programas sociais, levou, em
parte, a cidade de São Paulo a
atingir seus melhores índices de
homicídio em 20 anos.
Enquanto não se disseminar essa tecnologia de paz e os brasileiros continuarem a se iludir com
idéias como pena de morte, aumento da maioridade penal ou a
comercialização de armas, estará
em discussão também a incompetência do regime democrático em
administrar conflitos -e, aí, será
a dupla morte de Vlado.
P.S. - O segredo da resistência
paulistana reside no seguinte: é
uma cidade feia, degradada e violenta que, ao mesmo tempo, reúne a elite do terceiro setor. Foi, na
cidade, por exemplo, que surgiu a
campanha pelo desarmamento.
Dessa combinação entre colapso
urbano e riqueza humana está
nascendo, aos poucos, uma vanguarda de soluções comunitárias.
É o que explica, em parte, por que
os bolsões de violência têm apresentado uma queda tão acentuada nos níveis de assassinato. O
surgimento dessa resistência,
quase como uma guerra de guerrilhas, é a melhor história da cidade de São Paulo neste século 21.
Ainda é muito pouco. Se somarmos roubos e furtos , na cidade,
entre janeiro e setembro, temos:
158.612 casos. Desse total, foram
71.356 veículos. Isso dá 11 carros
por hora.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: + Saudável Próximo Texto: Panorâmica - Violência: Chacina na zona norte de SP deixa 3 mortos Índice
|