São Paulo, terça-feira, 30 de dezembro de 2008

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CECILIA GIANNETI

Consertando o ano velho


Quem se crê correto pode empenhar-se em continuar assim ou, com maior ousadia, melhorar, renovar, renascer

ESSE FIAPO de ano que resta não dá nem pra encher o buraco do dente, mas é bom que é danado pra um esporte a que só nas horas mais vazias podemos nos dedicar 100%, zero estresse, foco somente no olho mágico da rua. "Ver-gente" é exercício diário, tornado mais especial no período em que a espécie se prepara pra mudar de vida -ou acredita colocar-se no caminho mais propício para fazê-lo.
No oco entre o almoço feito com sobras da ceia de Natal e a noite de Réveillon, desfilamos publicamente em plena "muda", feito bicho trocando de pêlo, ainda que nem todos sejam dados a exibir claramente os sintomas do que ruminam e planejam para o novo ano, de inomináveis arrependimentos e expectativas desproporcionais.
Quem acha que está torto pretende se endireitar ("Ora, ninguém segue por aí fazendo o mal se sabe que é o mal; faz o mal por acreditar que é o bem", quase escuto recitar uma amiga carioca, fiel a Platão). Quem se crê correto pode empenhar-se em continuar assim ou, com maior ousadia, melhorar, "révellier", renovar, renascer. Essas coisas... como se fossem mesmo coisas, a vida sob controle, um botão que se aperta e pimba!, tá lá: a mera troca de um dígito no calendário gregoriano é responsável por mover céus, terras e mares. Sobre os céus os adeptos da astrologia e dos especiais de fim de ano colocam mais fé do que são capazes de investir no próprio taco. Júpiter isso, Urano aquilo. Noves fora, a culpa do que se vai e do que vier é dos astros. E a que pé ficam os que crêem ter os pés no chão? Na achância, igual a todo o restante do planeta.
Caminho pra fora do bairro que me hospeda, num último esforço em 2008 pra "ver-gente". Na Vila Mariana está em falta o material humano necessário ao esporte. À rara padaria de esquina que resistira de portas levantadas, convergem carros, famílias e solitários, com ou sem cães, em busca de sorvete, cigarros.
Pra onde foi aquela cabeçada que, ainda no começo da outra semana, formigava nervosa do centro à Augusta, Lorena, Paulista? Vazaram por rodoviárias, estradas e companhias aéreas, trânsito e atrasos fenomenais. Eu, que ao meio-dia de qualquer dia, feriado ou não, já começo a arranhar a porta, doida por movimento, na manhã de Natal, me senti a besta na calmaria, latindo pra própria sombra no muro da tal padoca da Vila -que logo fechou.
No Rio de Janeiro, assim funciona a coisa nesta época: permanecem as aglomerações na orla e entorno, inquebráveis, por mais meia-boca que pareça o sol, mais morno e familiar o feriado, independente de toda a preguiça que vier depois do rango. O mar, o calçadão e a cerveja gelada são clichês perdoados no verão de qualquer balneário, não cansam de atrair turistas e locais. Tão fácil de ver que às vezes a gente não os enxerga, não "clica".
Em busca de "ver-gente", em SP, fui pela Ipiranga até a praça da República, na direção do comércio, dos informais nas calçadas, onde deviam se aglutinar os que não pegaram um vôo ou volante pra casa ou pra alguma praia. Por intuição, lá encontrei camelôs e consumidores. Na Galeria do Rock, enorme concentração de camisas-preta, e a cena que escolhi registrar: o guri deixa a loja onde trabalha no térreo carregando pequenas ferramentas; do lado de fora, agacha-se para apertar os parafusos e consertar as rodas do skate onde se equilibra o velho pedinte sem pernas.


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