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MOACYR SCLIAR
Duas escovas de dente, um copo
Divida a casa sem multiplicar problemas. Morar juntos traz vantagens
óbvias... mas implica também repartir o banheiro. Folha Equilíbrio,
27.jul.2000
No começo , era só amizade: colegas de faculdade resolveram repartir o aluguel de um
pequeno apartamento. Aparentemente nada tinha a ver com sexo,
mas já na segunda noite ele se introduziu na cama dela e a partir
daí nasceu uma paixão furiosa,
uma paixão que ela, como disse
às amigas, jamais tinha experimentado. Escusado dizer que estavam muito felizes, os dois, e que
se congratulavam pela idéia que
tinham tido, de partilhar a moradia.
Os meses passaram e, como
sempre acontece, a rotina foi
substituindo a paixão. Não que
fosse uma rotina desagradável,
pelo contrário: ambos gostavam
das mesmas coisas, dos mesmos
livros, dos mesmos CDs, da mesma comida. Descobriam que a
calma convivência pode ser tão
gratificante quanto o sexo. E ele
se declarava muito feliz.
Ela também... Ela também. Mas
na verdade, não se sentia inteiramente feliz. Por causa de um detalhe: o banheiro.
Havia um único banheiro. Minúsculo, com um armário igualmente minúsculo. Nesse armário,
guardavam o mínimo de coisas
possível: pente, escova para cabelo, desodorante, alguns frascos de
remédio. Ah, sim, e o copo com as
duas escovas de dentes.
Esse copo incomodava-a . Muito. Aliás, não exatamente o copo:
as escovas. E não exatamente as
escovas: a escova. A dele.
Era uma escova grande (o que
se justificava: ele tinha belos, mas
enormes dentes), com um cabo
retorcido, e, o que era pior, uma
cor horrível, um amarelo gema-de-ovo, cuja visão a deixava
doente. A escova dela, ao contrário, era pequena, delicada, de um
azul muito pálido. Ou seja: a escova amarela dominava aquele espaço. A escova amarela afirmava,
de forma gritante, a sua superioridade. E aquilo ela não podia suportar.
Várias vezes pediu-lhe que trocasse de escova. No começo, ele levou na brincadeira, não deu bola.
Quando ela insistiu, respondeu de
maus modos. Pela primeira vez,
brigaram, ela chorou.
A briga repetiu-se: acabaram
por se separar. E, separados, ela
descobriu o quanto o amava. Telefonou-lhe, implorou por uma
reconciliação. Inútil: ele já tinha
outra namorada.
Ela mora sozinha. No minúsculo armário de seu minúsculo banheiro há um copo com duas escovas. Uma é a dela: pequena, delicada. A outra, que comprou depois de muito pesquisar, é uma
escova amarela, de cabo retorcido, enorme, horrível. Cada vez
que ela olha essa escova, deixa escapar um suspiro. E lembra que
um dia foi feliz.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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