São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2000


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MOACYR SCLIAR
Duas escovas de dente, um copo

 Divida a casa sem multiplicar problemas. Morar juntos traz vantagens óbvias... mas implica também repartir o banheiro. Folha Equilíbrio,
27.jul.2000

No começo , era só amizade: colegas de faculdade resolveram repartir o aluguel de um pequeno apartamento. Aparentemente nada tinha a ver com sexo, mas já na segunda noite ele se introduziu na cama dela e a partir daí nasceu uma paixão furiosa, uma paixão que ela, como disse às amigas, jamais tinha experimentado. Escusado dizer que estavam muito felizes, os dois, e que se congratulavam pela idéia que tinham tido, de partilhar a moradia.
Os meses passaram e, como sempre acontece, a rotina foi substituindo a paixão. Não que fosse uma rotina desagradável, pelo contrário: ambos gostavam das mesmas coisas, dos mesmos livros, dos mesmos CDs, da mesma comida. Descobriam que a calma convivência pode ser tão gratificante quanto o sexo. E ele se declarava muito feliz.
Ela também... Ela também. Mas na verdade, não se sentia inteiramente feliz. Por causa de um detalhe: o banheiro.
Havia um único banheiro. Minúsculo, com um armário igualmente minúsculo. Nesse armário, guardavam o mínimo de coisas possível: pente, escova para cabelo, desodorante, alguns frascos de remédio. Ah, sim, e o copo com as duas escovas de dentes.
Esse copo incomodava-a . Muito. Aliás, não exatamente o copo: as escovas. E não exatamente as escovas: a escova. A dele.
Era uma escova grande (o que se justificava: ele tinha belos, mas enormes dentes), com um cabo retorcido, e, o que era pior, uma cor horrível, um amarelo gema-de-ovo, cuja visão a deixava doente. A escova dela, ao contrário, era pequena, delicada, de um azul muito pálido. Ou seja: a escova amarela dominava aquele espaço. A escova amarela afirmava, de forma gritante, a sua superioridade. E aquilo ela não podia suportar.
Várias vezes pediu-lhe que trocasse de escova. No começo, ele levou na brincadeira, não deu bola. Quando ela insistiu, respondeu de maus modos. Pela primeira vez, brigaram, ela chorou.
A briga repetiu-se: acabaram por se separar. E, separados, ela descobriu o quanto o amava. Telefonou-lhe, implorou por uma reconciliação. Inútil: ele já tinha outra namorada.
Ela mora sozinha. No minúsculo armário de seu minúsculo banheiro há um copo com duas escovas. Uma é a dela: pequena, delicada. A outra, que comprou depois de muito pesquisar, é uma escova amarela, de cabo retorcido, enorme, horrível. Cada vez que ela olha essa escova, deixa escapar um suspiro. E lembra que um dia foi feliz.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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