São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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Assédio sexual "desmonta" Juliana

da Reportagem Local

Uma moça que mal deixou a adolescência tem condições de vigiar rapazes com idades entre 16 e 21 anos, autores de crimes classificados como "graves" e "gravíssimos"? A Febem julga que sim.
Por acreditar no improvável, contratou Juliana em setembro de 1995. A jovem paranaense acabara de completar 20 anos. Depois de um treinamento de três dias, se tornou monitora do complexo do Tatuapé (zona sudeste de SP), que possui capacidade para 900 infratores, embora abrigue 1.360.
Hoje, Juliana continua na mesma função, mas não vai trabalhar desde junho. Recebeu licença médica por sofrer de depressão aguda e síndrome do pânico.
Não sai de casa desacompanhada: teme cruzar pelas ruas com ex-internos do Tatuapé ("graças a Deus, nunca cruzei"). Só dorme de dia. Atravessa as noites escutando barulhos inexistentes.
O que mais a entristece, porém, é não cuidar da filha como gostaria. Por causa do nervosismo constante, costuma se irritar com a menina de 2 anos.
O marido, taxista, também paga as consequências. No fim de 1998, cansado das brigas conjugais, abandonou a casa da família -um sobrado de três dormitórios, em Guarulhos (SP). Voltou há cinco meses, mas evita conversar com a mulher sobre a Febem.
Antes de virar monitora, Juliana teve dois empregos: recepcionista de uma imobiliária e auxiliar de compra e venda de telefones. Soube pelo jornal da vaga no Tatuapé. Interessou-se em prestar o concurso porque ofereciam salário maior do que ganhava. "E porque aceitaram a minha escolaridade, segundo grau incompleto."
Passou nas provas e fez o treinamento. "Treinamento é modo de dizer. Durante três dias, ouvimos palestras de funcionários administrativos e participamos de jogos pedagógicos. Pintaram um mundo maravilhoso para nós, um conto da carochinha. Se falassem a verdade, ninguém ficaria."
A verdade: Juliana, que até aquele momento nunca imaginara lidar com infratores, de repente se viu num pátio rodeada por jovens acusados de assalto, estupro, sequestro e homicídio (os tais crimes que a Febem qualifica de "graves" e "gravíssimos").
"Eram uns 80 internos para 6 monitores." Só que, às vezes, "faltava pessoal", e Juliana zelava sozinha por 60 rapazes. "Eu e eles no pátio, tente visualizar a cena. Eles lá, e eu cá, pensando: se quiserem, me destroem." Punha-se, então, a rezar calada, "mas sem tirar os olhos dos meninos, sem lhes dar as costas e, principalmente, sem demonstrar medo".
Nos primeiros 18 meses, não enfrentou problemas mais sérios. "O clima ainda não pesava muito. Dava para jogar vôlei e xadrez com os garotos, para organizar festas de Páscoa, Natal, Ano Novo." Naquele tempo, também havia "os porretes". Pedaços de pau que os monitores embrulhavam em sacos plásticos e guardavam "numa sala bem fechada, junto do material de limpeza".
Quando pipocavam ameaças de rebelião, os funcionários "abriam os sacos" para resgatar a ordem. "Mas veja bem: usávamos os porretes somente em situações de extremo perigo."
A partir de 1997, no entanto, o cenário mudou. Padres, juízes e promotores ("a turma dos direitos humanos") passaram a visitar o complexo com mais frequência. "Recolheram os porretes e proibiram que aplicássemos qualquer castigo contra os internos. Resultado: os meninos ganharam confiança e perderam o respeito."
Deixaram, primeiro, de tratar Juliana por "senhora". Depois, começaram a lhe dirigir gracinhas: "Você está demais hoje". Um dos garotos, de 16 anos, inventou que transara com a monitora dentro do banheiro. Espalhou a mentira, e o nome de Juliana apareceu escrito nas paredes dos dormitórios e nos beliches.
"Recebia cartas anônimas, com declarações de amor. Se passasse perto do campo de futebol, os rapazes interrompiam o jogo para me xingar. Tentei trabalhar por um tempo em funções burocráticas, longe do pátio. Não adiantou. Os meninos se aproximavam do escritório e me ofendiam. Faziam ameaças: "O mundão é pequeno; cedo ou tarde, a gente te pega"."
No início de 1999, muito abalada, Juliana pensou em pedir demissão. "Desisti porque não achei nada com salário parecido. Infelizmente, preciso do dinheiro -ainda não saldamos o financiamento de nossa casa."
Há poucos meses, atendeu os conselhos da mãe e buscou ajuda psiquiátrica. "Consegui licença médica, mas não me livrei da angústia. Queria ter coragem de largar tudo. Sonho mesmo é em abrir uma loja de cosméticos e esquecer que, um dia, me meti nesse pesadelo." (AA)


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