São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 2006

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Posto de saúde flutuante alegra o Tapajós

Barco de R$ 2,6 mi, doado por holandeses a projeto brasileiro, oferece atendimento médico e odontológico às margens do rio no Pará

Iniciativa, que é mantida com verba internacional, beneficia 29 mil pessoas em área de floresta, divididas em 143 comunidades

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A SANTARÉM (PA)

No barco Abaré, do Projeto Saúde e Alegria (PSA), ninguém precisa de despertador. Por volta das 5h (7h em Brasília), o silêncio repentino com a troca de geradores a diesel é a deixa para os últimos dos 20 tripulantes saltarem de suas camas -ou redes. Às 7h30 tudo tem de estar pronto para abrir as portas do pioneiro posto de saúde flutuante da Amazônia.
Quem não tem função definida, como o jornalista embarcado, pode se permitir mais alguns minutos de descanso no camarote 2, junto à ponte de comando. O calor e o ruído dos dois motores propulsores a diesel, um tropel de 240 cavalos cada um, põem fim à esperança.
São 5h20 e o Abaré -"amigo" ou "cuidador", em língua indígena- começa a balançar, sinal de que voltou a navegar. Começa mais uma jornada do barco doado em comodato ao projeto pela organização holandesa Terre des Hommes, um posto de saúde flutuante construído em Manaus (AM) ao custo de R$ 2,6 milhões. Outro R$ 1,5 milhão anual da ONG garante o combustível e uma equipe fixa para o Abaré.
Com as primeiras luzes da manhã, a embarcação deixa o abrigo de Capixauã. A meia lua de areia branca, quase um lago, é um dos raros abrigos na margem esquerda do Tapajós. Desse lado do rio, o fundo é muito plano e impede a aproximação de barcos na seca, mesmo quando o calado é baixo, como os 80 centímetros do Abaré.
O rio, em alguns pontos, chega a ter dez quilômetros de largura. Suas águas verdes podem presenciar tempestades dignas de um oceano. O prático Miguel da Silva Rego e o contramestre David Pereira recusam-se a serem surpreendidos por elas ao largo e no escuro.
As longuíssimas praias que surgem em ambas as margens do rio, de julho a dezembro, parecem desertas. Na floresta detrás delas, porém, vive a maior parte das 29 mil pessoas de 143 comunidades atendidas pelo PSA, entre as cerca de 800 espalhadas pela área rural de Santarém - município maior que o Estado de Sergipe.

Chegada a Suruacá
A contemplada, nesta manhã de 13 de dezembro, é a vila de Suruacá (não confundir com Surucuá, rio acima). Nela moram 110 famílias, mais de 500 habitantes, todas as casas servidas com água encanada e tratada. Do barco, ancorado a 300 metros da areia, enxerga-se apenas a escada de 56 degraus até o topo do barranco.
São 6h20. Na outra ponta do corredor de camarotes que atravessa o terceiro deque do barco, o café está servido: pão, manteiga, requeijão, queijo, presunto, bolo, biscoitos. "A hotelaria é de primeira", avalia o médico paulistano Fabio Tozzi, integrante do projeto.
Tozzi já se alimentou. Assim como os outros 11 tripulantes encarregados do atendimento de saúde (os demais são práticos, marinheiros e cozinheiras), está de banho tomado. Vários deles estão vestidos de branco até os pés.
O piso do Abaré brilha como o de um hospital privado de primeira linha no Rio de Janeiro ou em São Paulo. O técnico Antônio Anastasis prepara freneticamente o laboratório de análises clínicas que está sob seu comando. Fica bem ao lado da sala com as duas autoclaves para esterilizar instrumentos, no final do corredor que atravessa o segundo deque.
Na outra ponta, a dentista Camila Tormes faz o mesmo com o gabinete dentário, junto à sala de espera e cadastramento que fica na proa. Tozzi conversa na porta dos consultórios com três colegas médicos. São os voluntários Lorenza Campos e Frederico Amâncio, residentes da UFMG, e Daniel Araújo, da USP, embarcados em 29 de novembro.
Dois marinheiros de macacão branco, mangas compridas e luvas iniciam o traslado dos pacientes que se aglomeram na praia. Utilizam lanchas de alumínio, conhecidas na Amazônia como "voadeiras". A primeira atraca na popa do Abaré às 7h25, com uma dezena de pessoas -muitas crianças e pelo menos uma mulher grávida em cada uma das levas.
A passagem do barco e das lanchas atrai a atenção de quem ali vive. São moradores como Maria Isabel dos Santos Silva, uma idosa atendida no Abaré e que vive na comunidade de Prainha. Em sua canoa, ela observa a embarcação, onde ela e a neta, que tem síndrome de Down, foram examinadas.
A lista de locais atendidos divide-se segundo a margem do rio. À esquerda fica a reserva extrativista Tapajós-Arapiuns. Do outro lado, o direito, está a floresta nacional Tapajós.

Alongamento e risadas
Depois do cadastramento, as crianças são arrebanhadas pela palhaça Macaxeira Jackson (Edicleise da Silva Rego, arte-educadora). Primeiro, uma rápida sessão de alongamento e de risadas. Depois, no corredor externo do segundo deque, uma aulinha de escovação de dentes com o "bocão" e a escova que foram improvisados na noite anterior em papelão.
Um dos desembarcados é o "presidente" da comunidade, Miguel Lima. Ainda no convés de proa, conta que tem 11 irmãos, mas que o número de filhos por mulher vem caindo. Com a distribuição gratuita de camisinhas, baixou de 8 para 4.
Lima se mostra satisfeito ao saber que o gabinete dentário do Abaré está aparelhado para fazer restaurações. Comenta que o dentista mais próximo, em Amorim, só faz extrações. "Em Santarém fica caro."
Os ribeirinhos que precisarem se deslocar até a sede do município para receber tratamento pagam R$ 10 de passagem nos barcos, e mais R$ 10 na volta. Sem garantia de atendimento, claro, como costuma ocorrer na saúde pública.

Boas e más notícias
O próprio Lima aponta para um espinho no braço esquerdo. Conta que já tinha ido três vezes a Santarém (PA) para extraí-lo, sem sucesso. Ao ser finalmente atendido por um médico, no Abaré, recebe uma boa e uma má notícia.
Quem o examina no consultório, às 9h25, é Frederico Amâncio. O médico mineiro, que faz residência em infectologia, dá primeiro a boa notícia: se for somente um espinho, não será preciso extrair. Ele terminará absorvido.
A lesão na pele, porém, pode indicar uma leishmaniose cutânea. Amâncio lhe dá uma pomada para evitar infecção. E alerta que, se a ferida aumentar, terá de procurá-lo no hospital de Santarém para colher material e verificar a presença do protozoário Leishmania.
O trabalho prossegue até as 14h, quando desembarcam os últimos pacientes que aguardavam resultados de exames de laboratório. Ao todo foram 51 consultas, sete tratamentos odontológicos (12 restaurações de resina e cinco extrações) e três eletrocardiogramas.
"Um dia tranqüilo", na avaliação do enfermeiro Reidevandro Machado da Silva. Ele é o responsável pela administração da embarcação, incluindo o abastecimento dos 400 itens da farmácia de bordo (260 medicamentos, que são distribuídos gratuitamente).
Em dias mais movimentados, como o anterior, na comunidade de Muratuba, podem acontecer até 87 consultas médicas e dez odontológicas.


Transporte, alojamento e alimentação do jornalista Marcelo Leite na região do Tapajós foram custeados pelo Projeto Saúde e Alegria


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