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Na mão de Deus

Fernando dos Santos Deus, craqueiro, com chumbo no corpo e atropelado, sobrevive

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

Usuário de crack, 31 anos, o morador de rua Fernando dos Santos Deus tinha ontem a clavícula direita fraturada, a cabeça e as costas em carne viva, o rosto com um rasgo que lhe ia da têmpora direita à orelha, hematomas por todo o corpo.

Santos Deus afirma que foi atropelado por um carro da Força Tática da Polícia Militar na madrugada de ontem, entre 2h e 4h da manhã.

Local: cracolândia, região central de São Paulo.

Dentro do carro, segundo o morador de rua, estariam policiais que fazem parte do contingente mobilizado há quatro dias na operação contra o consumo de crack.

Santos Deus disse que os soldados não lhe prestaram socorro e que teve de esperar ferido, jogado na rua, durante pelo menos uma hora, até a chegada da equipe do resgate do Corpo de Bombeiros.

Relatos idênticos foram ouvidos ontem durante todo o dia pela coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Daniela Skromov de Albuquerque. Instalada em plena cracolândia, em uma base móvel, ela recolheu denúncias de maus-tratos contra os usuários de drogas.

TESTEMUNHAS

A moradora de um edifício vizinho contou que o atropelamento aconteceu quando um grupo de dependentes reunidos para comprar e fumar crack estava sendo dispersado pelos policiais.

Santos Deus teria tropeçado na guia da calçada, e caído. "A viatura passou duas vezes por cima dele", disse ela. Outros usuários de crack repetiram o mesmo enredo.

Nenhum testemunho mencionou o número do carro oficial ou suas placas.

A Defensoria Pública também colheu relatos de moradores da cracolândia sobre uso de gás pimenta para dispersar concentrações de usuários, xingamentos, humilhações, "constrangimentos ao direito de ir, vir, permanecer e circular", além de ter fotografado duas pessoas com marcas de agressões recentes "causadas, segundo as denúncias, por PMs ou guardas civis metropolitanos", explicou a defensora Daniela.

Ontem à tarde, a Folha encontrou Santos Deus sozinho na portaria do pronto socorro do Hospital do Servidor Municipal, à espera de atendimento. Ele não apresentou documentos, não disse onde mora, não falou sobre familiares vivos ou mortos. Seu nome pode nem ser o que declarou.

Colocado em uma cadeira de rodas, com a cabeça enfaixada, um tufo de algodão pregado na altura da orelha, camiseta dura por causa do sangue coagulado, a roupa colada nos ferimentos, gemendo de dor, a toda hora ele ameaçava cair do assento.

Só com muito esforço conseguia se comunicar, assim mesmo de forma confusa. E caía no sono todo o tempo.

Uma atendente na portaria do hospital explicou que o morador de rua estava ali dentro, sem atendimento algum, porque tinha saído "voluntariamente" do hospital.

Outra atendente, percebendo que ele não podia ter saído se estava dentro, dispôs-se a encaminhá-lo, enfim, para tratamento.

Levado à sala do raio-X, Santos Deus surpreendeu os médicos com sua radiografia -além de confirmar a fratura no ombro, viu-se que o jovem tinha uma incrível constelação de pontos (brancos na chapa) dentro do corpo, na altura da pélvis e espalhados por todo o tórax.

Eram bolinhas de chumbo, usadas dentro da munição de balas calibre 12. Santos Deus já tomou um tiro da arma usada até para matar elefantes -e sobreviveu.

O médico receitou-lhe anti-inflamatório, analgésico e antibiótico e deu-lhe alta. Com o ombro enfaixado e tudo o mais doendo, Santos Deus, entretanto, não conseguia se levantar da cadeira de rodas do hospital.

REJEITADO

No serviço social do Pronto Socorro, a funcionária explicou que nenhum albergue municipal aceitaria um hóspede naquelas condições -da orelha dele quase 12 horas depois, ainda saía sangue.

Santos Deus, sem ter para onde ir, voltou para dentro do pronto socorro, onde deve ter passado a noite.

A assessoria de imprensa do Comando Geral da PM disse à Folha que a denúncia do atropelamento e da eventual omissão de socorro por parte dos policiais da Força Tática será investigada pela Corregedoria da instituição.

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