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Minha História / Léa Chagas, 70

Sempre em frente

(...) A psicóloga Léa Chagas, 70, viu sua vida mudar de uma hora para outra; internada para passar por uma cirurgia cardíaca acabou em coma e teve os dois pés amputados; desde então, a vida é reaprender

ELIANE TRINDADE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

RESUMO
Em novembro de 2007, a psicóloga Léa Chagas, 70, sofreu duas paradas cardíacas após uma cirurgia para a troca de uma válvula cardíaca. Ficou 40 dias na UTI, teve gangrena e seus pés precisaram ser amputados. O direito até perto do joelho. Em abril de 2008, voltou a caminhar usando próteses

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Estava na UTI há mais de um mês, quando recebi a notícia de que teria os pés amputados. Estava muito perturbada, com o corpo cheio de fios, furos e bolhas.

Foi terrível ouvir do médico que não ia ter jeito. "Deu gangrena, teremos que amputar."

Quando contei ao meu marido, Carmo, ele também ficou mal. Eu disse a ele: "Até hoje fui feliz de um jeito. Daqui para a frente, vou ser feliz de outro jeito". A frase virou o título do livro que ele escreveu sobre a nossa experiência.

A cirurgia para retirada do meu pé direito foi em 13 de dezembro de 2007. Decidimos cremá-lo. Depois, Carmo fez o mesmo com o outro pé.

Quando voltei pra casa, espalhei as cinzas nas primaveras do nosso jardim. Ficaram lindas. Meus pés ainda estão aqui, viraram uma poeirinha.

A grande força para enfrentar tudo isso veio do Carmo, das minhas duas filhas, que todos os dias estavam no hospital se revezando, e dos amigos. Estava cercada de afeto, de calor, de esperança.

Em dois momentos, os médicos chegaram a dizer que meu caso era de óbito.

Os enfermeiros passavam toda hora e olhavam pela cortina pra ver se eu tinha morrido. Ficava brava. Uma vez, eu disse ao Carmo: "O pessoal está achando que eu vou morrer e toda hora vem aqui ver. Eu não morri e não vou morrer".

No hospital, há o momento das visitas, que você recebe apoio, e há outro, de inteira solidão. Precisa ter fé, encontrar força em algo maior.

Os 66 dias internada, 40 deles na UTI, me deram uma outra perspectiva. A partir do momento que você tem presente a morte, passa a viver cada minuto.

A limitação impõe outra forma de vida. Deixei de fazer coisas de que gostava. Caminhava muito, frequentava o clube todos os dias. Gostava de ir à praia, escalar montanhas, pular Carnaval. Não tenho mais essa possibilidade.

Claro que há momentos de tristeza. Uma vez, fiquei com tanta saudade dos meus pés, que fiz massagem na prótese.

NOVAMENTE EM PÉ

Voltar a andar foi uma emoção imensa. Provei uma prótese pela primeira vez, após cinco meses na horizontal. Foi o máximo quando o médico disse: "Você vai ficar de pé".

No consultório, havia barras paralelas. No que fiquei de pé, ele disse: "Agora, você vai andar". Eu comecei a escorregar o pé da prótese, um na frente do outro. O médico me encorajou: "Tenta levantar um pé, depois o outro".

O primeiro passo foi meio arrastado, mas consegui comandar um pé que não era meu. Sinto um calcanhar que me dá apoio, e ele não existe. O que me segura em pé são o joelho e as coxas.

Carmo e eu nos emocionamos muito, naquele 9 de abril de 2008. Foi um renascimento. O médico nos deixou a sós para que vivêssemos a emoção daquele momento.

Voltei a andar. Não como antes, mas pude voltar a ser quem eu era. A partir do momento que fiquei em pé novamente, visualizei que podia ganhar independência, voltar a trabalhar.

SAPATILHAS

Um dia na clínica de reabilitação, vi uma prótese com sapatilha. A fisioterapeuta explicou que podia usar sapato desde que tivesse um salto de uns dois centímetros, como os tênis. Fui direto comprar uma sapatilha. Eu me senti maravilhosa.

Você encontra graça na vida de outra forma. Numa festa na casa de amigos, o anfitrião me puxou para dançar a Tarantella. Ele me fazia rodopiar pela sala, enquanto nossos amigos acompanhavam comovidos. Sou assanhada pra dançar. Já dancei até forró em festa junina.

Depois do fim da reforma da nossa casa, que é cheia de degraus, vamos comprar um carro adaptado. Continuamos a ir para a casa no litoral.

Não posso ir à praia, mas vou tomar uma cerveja num bar à beira-mar, comer um peixe. Levo sempre meu binóculo. Sento na varanda, coloco umas frutas e os pássaros vêm.

Sou feliz, o pior já passou. Corri o risco de ter também amputadas as mãos. Dou uns beijinhos nelas, quando lembro que podia tê-las perdido.

É claro que ainda estou digerindo tudo, mas procuro esquecer as limitações. Com frequência, esqueço a bengala.

Ando superbem em terrenos planos. Meu recorde foram 3 km. Carmo e eu continuamos a fazer nossas caminhadas. Ele está sempre do meu lado. É os meus pés.

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