|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crise imobiliária faz surgir bairro fantasma
na "capital do subprime"
DO ENVIADO A CLEVELAND
Numa tarde quente do último verão norte-americano, a
menina Asteve'e "Cookie"
Thomas atravessou sem perceber o tiroteio entre duas
gangues rivais no bairro de
Slavic Village, em Cleveland,
no Estado de Ohio. A estudante de 12 anos morreu na hora.
Se a crise do "subprime" tem
rosto, é o dela.
Dois anos atrás, o lugar em
que seus pais escolheram para
morar não tinha gangues. Fundado no século retrasado por
imigrantes poloneses, logo virou um bairro de famílias de
trabalhadores das siderúrgicas. Hoje, o código postal de lá,
44105, é o campeão em número de hipotecas inadimplentes
executadas no país.
Há quarteirões de casas
abandonadas, o que empresta
um ar de cidade fantasma ao
lugar. Uma vez que se sabe que
a casa foi "executada", em menos de 72 horas ela é depenada.
Os ladrões vão atrás principalmente dos canos de cobre.
É comum ver placas em casas já atingidas, com o aviso:
"Não tem cobre, encanamento
de PVC". "Só outros quatro códigos postais no país tiveram
um êxodo maior do que o de
Slavic Village", diz Jim Rokakis, tesoureiro do condado de
Cuyahoga, divisão administrativa que empresta o nome do
maior rio da cidade e que engloba o bairro.
Moradores contam casos de
uma hipoteca executada que
causou um efeito dominó numa rua até que restasse apenas
uma casa habitada no quarteirão inteiro. "Foi o que aconteceu na rua 52 Leste", diz Susan
Gordon, do Slavic Village Development, uma ONG criada
para reerguer o bairro.
Por que o Slavic Village? O
vereador Anthony Brancatelli
diz que é uma "tempestade
perfeita". A Folha o encontrou
no restaurante polonês Seven
Roses, de 80 anos, comemorando o Natal numa das duas
mesas ocupadas.
Segundo o político democrata, há três vezes mais execuções em Ohio do que em outros Estados. Dos 21 bairros
mais atingidos nacionalmente, 4 estão em Cleveland, a cidade principal, apelidada de "a
capital do "subprime" dos
EUA". Entre os seus bairros, o
primeiro colocado é o Slavic,
com três execuções por dia.
Além da migração dos empregos de manufatura para
países com mão-de-obra mais
barata, que atingiu o Estado
como um todo, Brancatelli
aponta outro motivo: "Fraude". Segundo o vereador, das
mil casas abandonadas ou demolidas, mais da metade fazia
parte de um esquema de fraude que outras cidades começam a descobrir.
Um investidor comprava várias casas num quarteirão, por
preços que variavam entre
US$ 20 mil e US$ 30 mil. Arrumava um avaliador já combinado, que inflava os preços de
revenda em até 300%, e arrumava compradores-laranja,
geralmente imigrantes, que
então conseguiam os financiamentos bancários "subprime"
para a compra da propriedade.
Em um mês, o comprador
sumia e, "em muitos casos",
segundo o político, "vendedor,
comprador e avaliador dividiam o lucro do financiamento". O fenômeno se espalha
pelo país. O número de financiamentos fraudulentos dobrou desde 2005 e cresceu
800% desde 2002, num prejuízo de US$ 4,5 bilhões. Há
1.204 casos sendo investigados
pelo FBI, ante 436 em 2003.
Até agora, 204 pessoas foram presas. "Isso era uma cidade sem xerife", diz o tesoureiro Rokakis, que nas últimas
semanas recebeu pedidos de
74 mil proprietários para reavaliação de suas casas para valores mais baixos, para efeito
de imposto. "Com menos imposto recolhido, há menos dinheiro para a polícia." E mais
gangues, como aquelas que
mataram Asteve'e "Cookie"
Thomas.
(SÉRGIO DÁVILA)
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Benjamin Steinbruch: Trabalhar e trabalhar Índice
|