São Paulo, terça-feira, 01 de janeiro de 2008

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Crise imobiliária faz surgir bairro fantasma na "capital do subprime"

DO ENVIADO A CLEVELAND

Numa tarde quente do último verão norte-americano, a menina Asteve'e "Cookie" Thomas atravessou sem perceber o tiroteio entre duas gangues rivais no bairro de Slavic Village, em Cleveland, no Estado de Ohio. A estudante de 12 anos morreu na hora. Se a crise do "subprime" tem rosto, é o dela.
Dois anos atrás, o lugar em que seus pais escolheram para morar não tinha gangues. Fundado no século retrasado por imigrantes poloneses, logo virou um bairro de famílias de trabalhadores das siderúrgicas. Hoje, o código postal de lá, 44105, é o campeão em número de hipotecas inadimplentes executadas no país.
Há quarteirões de casas abandonadas, o que empresta um ar de cidade fantasma ao lugar. Uma vez que se sabe que a casa foi "executada", em menos de 72 horas ela é depenada. Os ladrões vão atrás principalmente dos canos de cobre.
É comum ver placas em casas já atingidas, com o aviso: "Não tem cobre, encanamento de PVC". "Só outros quatro códigos postais no país tiveram um êxodo maior do que o de Slavic Village", diz Jim Rokakis, tesoureiro do condado de Cuyahoga, divisão administrativa que empresta o nome do maior rio da cidade e que engloba o bairro.
Moradores contam casos de uma hipoteca executada que causou um efeito dominó numa rua até que restasse apenas uma casa habitada no quarteirão inteiro. "Foi o que aconteceu na rua 52 Leste", diz Susan Gordon, do Slavic Village Development, uma ONG criada para reerguer o bairro.
Por que o Slavic Village? O vereador Anthony Brancatelli diz que é uma "tempestade perfeita". A Folha o encontrou no restaurante polonês Seven Roses, de 80 anos, comemorando o Natal numa das duas mesas ocupadas.
Segundo o político democrata, há três vezes mais execuções em Ohio do que em outros Estados. Dos 21 bairros mais atingidos nacionalmente, 4 estão em Cleveland, a cidade principal, apelidada de "a capital do "subprime" dos EUA". Entre os seus bairros, o primeiro colocado é o Slavic, com três execuções por dia.
Além da migração dos empregos de manufatura para países com mão-de-obra mais barata, que atingiu o Estado como um todo, Brancatelli aponta outro motivo: "Fraude". Segundo o vereador, das mil casas abandonadas ou demolidas, mais da metade fazia parte de um esquema de fraude que outras cidades começam a descobrir.
Um investidor comprava várias casas num quarteirão, por preços que variavam entre US$ 20 mil e US$ 30 mil. Arrumava um avaliador já combinado, que inflava os preços de revenda em até 300%, e arrumava compradores-laranja, geralmente imigrantes, que então conseguiam os financiamentos bancários "subprime" para a compra da propriedade.
Em um mês, o comprador sumia e, "em muitos casos", segundo o político, "vendedor, comprador e avaliador dividiam o lucro do financiamento". O fenômeno se espalha pelo país. O número de financiamentos fraudulentos dobrou desde 2005 e cresceu 800% desde 2002, num prejuízo de US$ 4,5 bilhões. Há 1.204 casos sendo investigados pelo FBI, ante 436 em 2003.
Até agora, 204 pessoas foram presas. "Isso era uma cidade sem xerife", diz o tesoureiro Rokakis, que nas últimas semanas recebeu pedidos de 74 mil proprietários para reavaliação de suas casas para valores mais baixos, para efeito de imposto. "Com menos imposto recolhido, há menos dinheiro para a polícia." E mais gangues, como aquelas que mataram Asteve'e "Cookie" Thomas. (SÉRGIO DÁVILA)


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