São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Berço da Vale enfrenta dias de incerteza

Responsável por 70% da economia da cidade de Itabira, em Minas Gerais, mineradora diminui número de funcionários

Sindicato local foi o único a recusar a oferta de corte da empresa de 50% no salário dos que forem colocados em licença remunerada

AGNALDO BRITO
ENVIADO ESPECIAL A ITABIRA E IPATINGA

"Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas." Itabira, cidade do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e berço da Vale (110 km ao norte de Belo Horizonte), vive dias de angústia e incertezas por conta da crise global.
Um jogo de bola no fim de uma quarta-feira sem perspectiva ajuda a dissipar as dúvidas sobre o futuro. Mas no bairro operário Novo Amazonas -de onde se avista, portentoso, o paredão do mais puro ferro tipo exportação- não se fala em outra coisa. "E agora?"
Nem Flávio, nem Adeilson, tampouco Geovani, força de trabalho arregimentada na então próspera Itabira, reunidos agora com outros colegas igualmente dispensados por força da crise, sabem agora quando as pedras do mais puro ferro de Itabira lhes darão nova perspectiva de trabalho.
Talvez o mundo volte guloso do minério das Minas Gerais, talvez o jejum perdure mais tempo. Como saber? A Vale já dispensou 79 funcionários na região, considerados ali a elite da cidade do poeta. Mas o número do desemprego entre os terceirizados ninguém sabe ao certo. O sindicato de Itabira, o Metabase, diz que mais de 2.000 trabalhadores que prestavam serviço na Vale foram dispensados a partir de um direto comunicado.
Os boleiros do bairro Novo Amazonas, a maioria soldadores de ofício, falam que só a empresa à qual pertenciam demitiu 800. "Fora as demais terceirizadas", diz Flávio Costa, um dos que se preparavam para deixar de ser um terceirizado e se tornar um legítimo funcionário da Vale. Não só, mas também por isso, se preparava para o casamento, em maio próximo. Por ora, a noiva, empregada, garante a data.
Flávio e todos os colegas foram tomados de surpresa pelo revés da economia mundial, que segue emburrada. A "pedra de ferro, futuro aço do Brasil", como disse Drummond no poema "Confidência do Itabirano", ganhou projeção mundial. O mineral extraído com força bruta do chão duro de Itabira viaja o mundo e é também parte do futuro aço chinês.
Mas o corte de 30 milhões de toneladas de minério da produção anual da Vale, responsável por 70% da economia local, abalou a cidade de Drummond. "Todos têm orgulho de trabalhar na Vale. Quem perdeu o trabalho anda envergonhado, está recluso. Tem esperança de voltar", diz João Izael Querino Coelho, prefeito de Itabira. Voltar, aliás, é a única alternativa. A outra é deixar a cidade.
Quantos desempregados ainda virão? Ninguém sabe. Sob a alegação de fim das demissões, a Vale fez uma oferta polêmica: corte de 50% no salário dos trabalhadores que forem colocados sob o regime de licença remunerada. Mas o berço da Vale, representado pelo Metabase de Itabira, disse não. Dos 7 sindicatos para os quais a Vale apresentou a proposta no país, 6 aceitaram o acordo coletivo. "É ilegal e imoral essa oferta. Ademais, como maior companhia privada do país, um acordo desse tipo significa a abertura de um precedente sem igual", diz Paulo Soares, presidente do sindicato local. A atitude da direção sindical está longe de ser confortável. Na sede do sindicato, ornado com uma imensa faixa preta em sinal de luto, trabalhadores da Vale surgem a todo momento em busca de uma resposta sobre o futuro. "Todo mundo está com receio sobre o que vai acontecer", disse um funcionário que não quis se identificar.
Irredutível, o sindicato apresenta seus argumentos. "Primeiro, que esse acordo é ilegal; segundo, que o lucro que a Vale anunciará nas próximas semanas dá a ela todas as condições de assegurar, sem reduzir o salário de ninguém, estabilidade aos trabalhadores; terceiro, que o governo, com o poder de veto de que dispõe, pode impedir qualquer decisão contra os trabalhadores", repete Soares.
Além disso, o Metabase afirma que o acordo apresentado é apenas uma promessa de estabilidade até 31 de maio. De fato, não há qualquer menção literal sobre "garantia de emprego". Aliás, uma das cláusulas admite a possibilidade de demissão no período da licença.
A Vale refuta a acusação, diz que está garantindo estabilidade até o fim de maio, embora o acordo tenha validade para todo este ano. A companhia argumenta: "A Vale reafirma que não irá demitir até o dia 31 de maio nenhum empregado representado pelos sindicatos que assinarem o acordo de licença remunerada". E acusa: "O sindicato Metabase Itabira se negou a negociar com a empresa e se recusa a submeter a proposta à deliberação da categoria, se justificando com interpretações tendenciosas, atacando inclusive os sindicatos que negociaram de boa-fé com a empresa".
Sobre a tal cláusula, ela diz ser "mais uma garantia de que o empregado não será desligado no período", sendo essa, "na realidade, uma multa que onera a empresa em dobro e à vista, caso venha a ser infringida".
O impasse está posto. A cidade "sem horizontes", como enxergou Drummond, vai reunindo gente sem trabalho, embora a Vale diga que o saldo de 2008 "siga positivo" em 279. De novo, a contabilidade dos terceirizados não está aí. Na última segunda, mais nove trabalhadores da Vale foram dispensados. E, diferentemente dos anteriores, sem qualquer benefício adicional, como extensão por seis meses do plano de saúde.
A falta de acordo só amplia o impacto negativo sobre a economia da cidade, mas tampouco o corte de direitos trabalhistas parece ser grande alento. No dia-a-dia da crise, o itabirano de Drummond, "triste, orgulhoso", precisa ser agora, mais que tudo, 100% de ferro.



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