São Paulo, terça-feira, 01 de março de 2005

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ARTIGO

O BNDES e a inteligência do desenvolvimento

GUIDO MANTEGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Além da Estagnação" é um texto clássico do pensamento desenvolvimentista latino-americano. A dupla, com o tempo, dissolveu-se: Maria da Conceição Tavares e José Serra hoje representam pólos antagônicos no imaginário político nacional, ela no PT, ele no PSDB. Mas no panteão dos pensadores originais sobre a realidade econômica e histórica do Brasil e do mundo eles estarão juntos para sempre.
Lembrar esse texto agora é oportuno, a começar pela importância de resgatar um traço de pensamento original comum aos dois, indo além das animosidades políticas do momento para alcançar, de fato, um nível "estrutural" de compreensão dos problemas e soluções apontados há uns 30 anos pelos dois economistas.
Há no esforço comum de Conceição e Serra, lá atrás, o desafio maior de enfrentar os espectros que assombram povo e elites de quando em quando, sob a forma de alertas catastrofistas sobre os riscos e as dificuldades de políticas econômicas "desenvolvimentistas".
O debate é velho e opõe monetaristas a estruturalistas, macroequilibristas a desenvolvimentistas, a galera da Fazenda à turma do Planejamento, interesses financistas a urgências produtivistas. Invariavelmente, esses contrapontos desdobram-se no confronto entre nacionalistas (inclusive os xenófobos) e globalizantes (inclusive os entreguistas).
Boa parte da grita recente contra o BNDES nada mais é que a reiteração dessas contradições clássicas da política brasileira, apimentadas pela presunção de uns, azedadas pela falta de modos de outros.
Em "Além da Estagnação", Serra e Conceição afrontavam a visão ultra-estruturalista que acentuava estrangulamentos estruturais como barreiras intransponíveis à manutenção de um processo de crescimento econômico acelerado. Uma visão, aliás, que chegou a ser compartilhada por um mestre comum aos dois, Celso Furtado, que também teve seus momentos de amargura. Nessa verve, Ignácio Rangel foi o que levou mais longe a crença num macrodeterminismo dos ciclos longos.
Nos anos 60, identificar uma impossibilidade econômica para a permanência da ditadura militar era um ato de resistência democrática. Esses pensadores foram grandes heróis e, nos piores momentos, o mestre Rangel conseguiu manter-se ativo, no BNDES.
A geração de Serra e Conceição, no entanto, estava mais interessada em construir uma alternativa (teria valido bem, naquela época, um mote do tipo "um outro Brasil é possível"). Correndo o risco de ser imediatamente corrigido pelos próprios autores, vivos e atuantes, é hora de retomar a metodologia de análise empregada em "Além da Estagnação".
O método estruturalista focaliza a dinâmica da economia, mesmo quando um ciclo se conclui, pois a nova geração de investimentos pode operar sobre bases tecnológicas, financeiras e comerciais inéditas.
Mas o estagnacionismo reinante tanto à direita quanto à esquerda do espectro político nacional, nos anos 60 e no início dos 70, era a tal ponto enraizado que o novo ciclo de desenvolvimento, engendrado por reformas e inovações financeiras de largo alcance, ganhou e nunca mais perdeu o codinome "milagre". Não é por acaso que Delfim Netto, condutor do feito, alinha-se atualmente entre os desenvolvimentistas, atento às armadilhas pseudo-científicas dos macroequilibristas.
O poder de fogo da análise de Serra e Conceição permitiu aos economistas ir além do viés ideológico para reconhecer, na dinâmica inovadora da economia, das reformas estruturais e das políticas estratégicas de então (públicas e privadas), o fio da meada de um crescimento econômico inédito, acelerado e surpreendente, feito afinal "âncora" de um período de recrudescimento do aperto político sob o olhar entusiasmado da classe média nacional.
O curioso é que, naquele texto de Serra e Conceição, tanto ultraliberais como ultra-estruturalistas são criticados, não em nome de algum ativismo voluntarista, mas com base em evidências empíricas de que o modelo brasileiro passava por uma etapa de evolução que ia além das reiterações cíclicas ou de estímulos de curto prazo (mais tarde se diria "pacotes"). Já naquele momento estava claro que a economia brasileira passava "da substituição de importações ao capitalismo financeiro".
A atenção aos focos e modos de dinamismo dos mercados e a sensibilidade para o tempo histórico, em que o "modelo" é ao mesmo tempo um projeto ou plano, resumem a visão desenvolvimentista de Serra e Conceição Tavares. Esse método continua atual, nenhum dos dois precisa solicitar ao mundo que esqueça o que escreveram.
No lugar da estagnação tida por inevitável num fim de ciclo, é fundamental identificar os fatores dinâmicos que engendram novas possibilidades de investimento e poupança, sem imaginar que o futuro será apenas a reedição do modelo cujo esgotamento torna-se patente.
Cerca de duas décadas perdidas depois do "milagre", o crescimento com base no gasto público inflacionário e a estabilidade animada por surtos de atração de poupança externa condenaram a sociedade brasileira a uma longa espera.
Hoje, o desafio de identificar fatores de dinamismo e padrões inovadores e sustentáveis de financiamento, público e privado, é urgente. A questão é saber se estamos diante apenas de mais uma etapa do "stop and go" das últimas duas décadas ou se teremos a capacidade criativa e o poder de fogo para engatar a economia em nova modalidade de crescimento.
Esse saber exige também maior consciência de que a sustentabilidade do modelo de desenvolvimento, em suas varias facetas, especialmente políticas, precisa ser encarada de frente. A partir do final de 2003, a retomada do crescimento e o vigoroso desempenho das contas externas afinal obrigaram o país a sair do terreno da macroeconomia da estabilidade. Agendas "microeconômicas" entraram em cena, e o tema da sustentabilidade do desenvolvimento veio para primeiro plano.
Há pelo menos duas formas de encarar o desafio. Para a tribo dos macroequilibristas, falar em "modelo" de desenvolvimento já é sair do terreno da ciência para lidar com artigos de fé. Nessa visão ultraliberal, se uma economia encontrou a estabilidade de preços, natural e espontaneamente, todos os mercados alcançarão o pleno desenvolvimento. O crescimento econômico equilibrado será um corolário dos ajustes entre oferta e procura em todos os mercados de bens, serviços e capitais. Ajustes supostamente facilitados quando o governo sai do caminho.
Já as vertentes da economia política atentas à microeconomia do desenvolvimento, ou seja, à heterogeneidade dos mercados e das instituições que lhes são subjacentes, aceitam o debate sobre trajetórias da economia, reconhecendo que as abordagens conceituais e os modelos políticos a partir de uma mesma situação de estabilidade de preços podem e, aliás, devem saudavelmente evoluir no tempo e no espaço.
Hoje, percebe-se novamente o enfrentamento entre os que confiam apenas no automatismo da passagem da estabilidade ao desenvolvimento e os economistas que, em número mais significativo e abordagens diferenciadas, admitem a pluralidade e, portanto, a necessidade de fazer e reavaliar opções sobre o papel do Estado, do mercado e das instituições.
Deve ser ainda mais inquietante, para a tribo dos macroequilibristas ultraliberais, constatar que, na prática, vão ganhando peso densidade e relevância importantes medidas patrocinadas pelo governo na agenda microeconômica, como a Lei de Falências, a Lei de Inovação, as Parcerias Público-Privadas e, pasmem, a realização de investimentos públicos estratégicos patrocinados pelo próprio FMI.
Nesse contexto, o debate relevante é o que se refere às diferentes possibilidades de retomada do crédito e do investimento, sobretudo em infra-estrutura, para evitar que o crescimento seja abortado prematuramente.
Quem se opõe a esse debate, no entanto, prefere inverter os termos e alertar para o risco de todo crédito violentar as condições de equilíbrio monetário, todo investimento inchar a demanda mais que ampliar a oferta, toda ação de governo virar populismo e irresponsabilidade fiscal. Nesse contexto, o macroequilibrista vê o BNDES por definição como anomalia.
Tecnicamente equivocados, os macroequilibristas reduzem-se hoje a uma minoria cujo cântico é de exorcismo das políticas e instituições estatais de desenvolvimento econômico. Nisso nada há de novidade ou de especificamente brasileiro. Já nos anos 50, alguns economistas iam ao extremo de postular que numa economia com mercados de capitais perfeitos as instituições financeiras seriam irrelevantes.
Na prática, a começar pelos países ricos, instituições de fomento apóiam o avanço tecnológico, micro e pequenas empresas, exportação, habitação e outras prioridades setoriais, inclusive o fomento ao mercado de capitais.
A guerra eleitoral já em curso pode criar armadilhas para o pensamento que apenas um debate ilustrado pelo conhecimento histórico, pela nossa memória do longo prazo, será capaz de desarmar. Saber qual o papel do Estado na organização de uma nova etapa de crescimento, em especial sua interferência na alocação de recursos fiscais, da poupança doméstica e da captação de recursos externos, nunca foi tarefa trivial e, diga-se, os erros cometidos nessas políticas ainda são pagos por toda a sociedade.
O BNDES, que desde Celso Furtado acumula capital intelectual associado ao financiamento de projetos, tem novo papel a cumprir como pólo estratégico de gestão pública desse saber.
Para ir além da estagnação e da estabilização, é preciso e é possível atuar com inteligência a favor de novas estratégias de desenvolvimento.


Guido Mantega é presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).


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