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ARTIGO
O BNDES e a inteligência do desenvolvimento
GUIDO MANTEGA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Além da Estagnação" é um
texto clássico do pensamento desenvolvimentista latino-americano. A dupla, com o tempo,
dissolveu-se: Maria da Conceição
Tavares e José Serra hoje representam pólos antagônicos no imaginário político nacional, ela no PT,
ele no PSDB. Mas no panteão dos
pensadores originais sobre a realidade econômica e histórica do
Brasil e do mundo eles estarão juntos para sempre.
Lembrar esse texto agora é oportuno, a começar pela importância
de resgatar um traço de pensamento original comum aos dois,
indo além das animosidades políticas do momento para alcançar,
de fato, um nível "estrutural" de
compreensão dos problemas e soluções apontados há uns 30 anos
pelos dois economistas.
Há no esforço comum de Conceição e Serra, lá atrás, o desafio
maior de enfrentar os espectros
que assombram povo e elites de
quando em quando, sob a forma
de alertas catastrofistas sobre os
riscos e as dificuldades de políticas
econômicas "desenvolvimentistas".
O debate é velho e opõe monetaristas a estruturalistas, macroequilibristas a desenvolvimentistas, a
galera da Fazenda à turma do Planejamento, interesses financistas a
urgências produtivistas. Invariavelmente, esses contrapontos desdobram-se no confronto entre nacionalistas (inclusive os xenófobos) e globalizantes (inclusive os
entreguistas).
Boa parte da grita recente contra
o BNDES nada mais é que a reiteração dessas contradições clássicas
da política brasileira, apimentadas
pela presunção de uns, azedadas
pela falta de modos de outros.
Em "Além da Estagnação", Serra
e Conceição afrontavam a visão ultra-estruturalista que acentuava
estrangulamentos estruturais como barreiras intransponíveis à
manutenção de um processo de
crescimento econômico acelerado. Uma visão, aliás, que chegou a
ser compartilhada por um mestre
comum aos dois, Celso Furtado,
que também teve seus momentos
de amargura. Nessa verve, Ignácio
Rangel foi o que levou mais longe a
crença num macrodeterminismo
dos ciclos longos.
Nos anos 60, identificar uma impossibilidade econômica para a
permanência da ditadura militar
era um ato de resistência democrática. Esses pensadores foram
grandes heróis e, nos piores momentos, o mestre Rangel conseguiu manter-se
ativo, no BNDES.
A geração de
Serra e Conceição,
no entanto, estava
mais interessada
em construir uma
alternativa (teria
valido bem, naquela época, um
mote do tipo "um
outro Brasil é possível"). Correndo o
risco de ser imediatamente corrigido pelos próprios autores, vivos e atuantes, é
hora de retomar a
metodologia de
análise empregada
em "Além da Estagnação".
O método estruturalista focaliza a
dinâmica da economia, mesmo
quando um ciclo
se conclui, pois a
nova geração de
investimentos pode operar sobre bases tecnológicas, financeiras e comerciais inéditas.
Mas o estagnacionismo reinante
tanto à direita quanto à esquerda
do espectro político nacional, nos
anos 60 e no início dos 70, era a tal
ponto enraizado que o novo ciclo
de desenvolvimento, engendrado
por reformas e inovações financeiras de largo alcance, ganhou e
nunca mais perdeu o codinome
"milagre". Não é por acaso que
Delfim Netto, condutor do feito,
alinha-se atualmente entre os desenvolvimentistas, atento às armadilhas pseudo-científicas dos macroequilibristas.
O poder de fogo da análise de
Serra e Conceição permitiu aos
economistas ir além do viés ideológico para reconhecer, na dinâmica inovadora da economia, das
reformas estruturais e das políticas
estratégicas de então (públicas e
privadas), o fio da meada de um
crescimento econômico inédito,
acelerado e surpreendente, feito
afinal "âncora" de um período de
recrudescimento do aperto político sob o olhar entusiasmado da
classe média nacional.
O curioso é que,
naquele texto de
Serra e Conceição,
tanto ultraliberais
como ultra-estruturalistas são criticados, não em nome de algum ativismo voluntarista, mas com base
em evidências empíricas de que o
modelo brasileiro
passava por uma
etapa de evolução
que ia além das
reiterações cíclicas
ou de estímulos de
curto prazo (mais
tarde se diria "pacotes"). Já naquele
momento estava
claro que a economia brasileira passava "da substituição de importações ao capitalismo financeiro".
A atenção aos
focos e modos de dinamismo dos
mercados e a sensibilidade para o
tempo histórico, em que o "modelo" é ao mesmo tempo um projeto
ou plano, resumem a visão desenvolvimentista de Serra e Conceição Tavares. Esse método continua atual, nenhum dos dois precisa solicitar ao mundo que esqueça
o que escreveram.
No lugar da estagnação tida por
inevitável num fim de ciclo, é fundamental identificar os fatores dinâmicos que engendram novas
possibilidades de investimento e
poupança, sem imaginar que o futuro será apenas a reedição do modelo cujo esgotamento torna-se
patente.
Cerca de duas décadas perdidas
depois do "milagre", o crescimento com base no gasto público inflacionário e a estabilidade animada
por surtos de atração de poupança
externa condenaram a sociedade
brasileira a uma longa espera.
Hoje, o desafio de identificar fatores de dinamismo e padrões inovadores e sustentáveis de financiamento, público e privado, é urgente. A questão é saber se estamos
diante apenas de
mais uma etapa do
"stop and go" das
últimas duas décadas ou se teremos
a capacidade criativa e o poder de
fogo para engatar a
economia em nova modalidade de
crescimento.
Esse saber exige
também maior
consciência de
que a sustentabilidade do modelo
de desenvolvimento, em suas
varias facetas, especialmente políticas, precisa ser
encarada de frente. A partir do final
de 2003, a retomada do crescimento
e o vigoroso desempenho das
contas externas
afinal obrigaram o
país a sair do terreno da macroeconomia da estabilidade. Agendas "microeconômicas" entraram em cena, e o tema da sustentabilidade do desenvolvimento
veio para primeiro plano.
Há pelo menos duas formas de
encarar o desafio. Para a tribo dos
macroequilibristas, falar em "modelo" de desenvolvimento já é sair
do terreno da ciência para lidar
com artigos de fé. Nessa visão ultraliberal, se uma economia encontrou a estabilidade de preços,
natural e espontaneamente, todos
os mercados alcançarão o pleno
desenvolvimento. O crescimento
econômico equilibrado será um
corolário dos ajustes entre oferta e
procura em todos os mercados de
bens, serviços e capitais. Ajustes
supostamente facilitados quando
o governo sai do caminho.
Já as vertentes da economia política atentas à microeconomia do
desenvolvimento, ou seja, à heterogeneidade dos mercados e das
instituições que lhes são subjacentes, aceitam o debate sobre
trajetórias da economia, reconhecendo que as abordagens conceituais e os modelos políticos a partir de uma mesma
situação de estabilidade de preços
podem e, aliás, devem saudavelmente evoluir no
tempo e no espaço.
Hoje, percebe-se novamente o
enfrentamento
entre os que confiam apenas no
automatismo da
passagem da estabilidade ao desenvolvimento e os
economistas que,
em número mais
significativo e
abordagens diferenciadas, admitem a pluralidade
e, portanto, a necessidade de fazer
e reavaliar opções
sobre o papel do
Estado, do mercado e das instituições.
Deve ser ainda
mais inquietante, para a tribo dos
macroequilibristas ultraliberais,
constatar que, na prática, vão ganhando peso densidade e relevância importantes medidas patrocinadas pelo governo na agenda
microeconômica, como a Lei de
Falências, a Lei de Inovação, as
Parcerias Público-Privadas e, pasmem, a realização de investimentos públicos estratégicos patrocinados pelo próprio FMI.
Nesse contexto, o debate relevante é o que se refere às diferentes possibilidades de retomada do
crédito e do investimento, sobretudo em infra-estrutura, para evitar que o crescimento seja abortado prematuramente.
Quem se opõe a esse debate, no
entanto, prefere inverter os termos e alertar para o risco de todo
crédito violentar as condições de
equilíbrio monetário, todo investimento inchar a demanda mais
que ampliar a oferta, toda ação de
governo virar populismo e irresponsabilidade fiscal. Nesse contexto, o macroequilibrista vê o
BNDES por definição como anomalia.
Tecnicamente equivocados, os
macroequilibristas reduzem-se
hoje a uma minoria cujo cântico é
de exorcismo das políticas e instituições estatais de desenvolvimento econômico. Nisso nada há
de novidade ou de especificamente brasileiro. Já nos anos 50, alguns economistas iam ao extremo de postular que numa economia com mercados de capitais
perfeitos as instituições financeiras seriam irrelevantes.
Na prática, a começar pelos países ricos, instituições de fomento
apóiam o avanço tecnológico, micro e pequenas empresas, exportação, habitação e outras prioridades setoriais, inclusive o fomento ao mercado de capitais.
A guerra eleitoral já em curso
pode criar armadilhas para o pensamento que apenas um debate
ilustrado pelo conhecimento histórico, pela nossa memória do
longo prazo, será capaz de desarmar. Saber qual o papel do Estado
na organização de uma nova etapa de crescimento, em especial
sua interferência na alocação de
recursos fiscais, da poupança doméstica e da captação de recursos
externos, nunca foi tarefa trivial e,
diga-se, os erros cometidos nessas
políticas ainda são pagos por toda
a sociedade.
O BNDES, que desde Celso Furtado acumula capital intelectual
associado ao financiamento de
projetos, tem novo papel a cumprir como pólo estratégico de gestão pública desse saber.
Para ir além da estagnação e da
estabilização, é preciso e é possível atuar com inteligência a favor
de novas estratégias de desenvolvimento.
Guido Mantega é presidente do BNDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social).
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