São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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ARTIGO

O'Neill não mostrou o que Bono estava procurando

PAUL KRUGMAN

Pobre bono . Em uma das empreitadas mais excêntricas na história da economia de desenvolvimento, o vocalista do U2 visitou a África com Paul O'Neill, o secretário do Tesouro dos EUA. Por um breve período, as tensões latentes entre os dois foram disfarçadas pela cortesia de Bono, mas na segunda-feira ele por fim perdeu a paciência.
A dupla estava visitando uma aldeia em Uganda, onde um novo poço de água fresca melhorara radicalmente as condições de saúde dos habitantes. A conclusão que O'Neill extraiu disso, bem como dos demais projetos de desenvolvimento que ele viu, foi que grandes melhoras nas vidas das pessoas não requerem muito dinheiro -e, portanto, não seria necessária uma grande ampliação na assistência estrangeira. Aliás, os EUA atualmente dedicam 0,11% de seu PIB à assistência internacional; o Canadá e as grandes nações européias são três vezes mais generosos. O "Fundo Milênio" proposto pelo governo Bush ampliaria a verba, mas para apenas 0,13% do PIB.
Bono ficou furioso, declarando que os projetos demonstravam o contrário, que o poço era "um exemplo dos motivos pelos quais precisamos de dinheiro sério para o desenvolvimento. E não um exemplo de que não precisamos disso. E, se o secretário não consegue ver a verdade, teremos de lhe dar um novo par de óculos e um novo par de orelhas".
Talvez a maneira mais simples de refutar O'Neill seja relembrar a proposta lançada no ano passado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), a qual deseja fornecer aos países pobres produtos como antibióticos e redes contra mosquitos tratadas com inseticidas. Se os Estados Unidos tivessem apoiado o programa proposto, que a OMS estimava salvaria 8 milhões de vidas ao ano, a contribuição norte-americana teria sido de cerca de US$ 10 bilhões anuais -cerca de US$ 0,05 ao dia por cidadão norte-americano, mas ainda assim uma duplicação do dispêndio atual com assistência internacional. Salvar vidas -até mesmo vidas africanas- custa dinheiro.
Mas será que O'Neill realmente é cego e surdo diante das necessidades da África? Provavelmente não. Ele está entre a cruz e a caldeirinha: quer demonstrar preocupação com a pobreza do mundo, mas as prioridades de Washington são outras.
Uma demonstração notável dessas prioridades é o contraste entre a rejeição seca do governo Bush à proposta da OMC e o esforço de ambos os partidos norte-americanos para tornar permanente a revogação, recentemente aprovada, do imposto sobre heranças. O que é notável nesse esforço é que os oponentes do imposto sobre heranças nem sequer tentaram argumentar que reduzir os impostos sobre os herdeiros ricos beneficiaria a sociedade como um todo. Em lugar disso, eles fizeram um apelo emocional -queriam que sentíssemos a dor daqueles que pagam o "imposto da morte". E a história triste funcionou. O Congresso rejeitou as propostas de reter o tributo, mesmo que elas elevassem o limite de isenção -o limite até o qual cada espólio está isento de tributos- para US$ 5 milhões.
Vejamos como a matemática funciona quanto a isso. Um imposto sobre heranças com limite de isenção de US$ 5 bilhões afetaria apenas umas poucas famílias muito ricas. O valor médio das heranças que ele tributaria seria de US$ 16 milhões. Se o imposto sobre o valor de espólio superior ao limite de US$ 5 milhões fosse tributado pela alíquota anterior a 2001, cada família reteria pelo menos US$ 10 milhões -o que não me parece miséria nenhuma-, e o governo arrecadaria US$ 20 bilhões a mais em impostos a cada ano. Mas não, o imposto precisa ser revogado integralmente.
Assim, eis as nossas prioridades. Diante de uma proposta que salvaria as vidas de 8 milhões de pessoas a cada ano, muitas das quais crianças, nós hesitamos devido ao custo. Mas, quando solicitados a oferecer renda igual a duas vezes esse custo a fim de permitir que 3.300 famílias afortunadas recebam o valor pleno de sua herança de US$ 16 milhões, em lugar de reles US$ 10 milhões, não hesitamos. Que nenhum herdeiro seja deixado para trás!
O que nos conduz de volta à viagem de Bono e O'Neill. O astro do rock talvez esperasse que os funcionários de primeiro escalão do governo norte-americano fossem simplesmente ignorantes, e não indiferentes -talvez eles simplesmente não percebessem que condições reinam nos países pobres e de que maneira a assistência internacional poderia fazer a diferença. Ao mostrar a O'Neill as realidades da pobreza e os benefícios que a assistência poderia prover, Bono esperava encontrar e acalentar a centelha de compaixão que certamente deve existir nos corações daqueles que se alegam conservadores compassivos.
Mas ele ainda não encontrou o que estava procurando.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi originalmente publicado pelo jornal "The New York Times".


Tradução de Paulo Migliacci

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