|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
O'Neill não mostrou o que Bono estava procurando
PAUL KRUGMAN
Pobre bono . Em uma das
empreitadas mais excêntricas
na história da economia de desenvolvimento, o vocalista do U2 visitou a África com Paul O'Neill, o
secretário do Tesouro dos EUA.
Por um breve período, as tensões
latentes entre os dois foram disfarçadas pela cortesia de Bono,
mas na segunda-feira ele por fim
perdeu a paciência.
A dupla estava visitando uma
aldeia em Uganda, onde um novo
poço de água fresca melhorara radicalmente as condições de saúde
dos habitantes. A conclusão que
O'Neill extraiu disso, bem como
dos demais projetos de desenvolvimento que ele viu, foi que grandes melhoras nas vidas das pessoas não requerem muito dinheiro -e, portanto, não seria necessária uma grande ampliação na
assistência estrangeira. Aliás, os
EUA atualmente dedicam 0,11%
de seu PIB à assistência internacional; o Canadá e as grandes nações européias são três vezes mais
generosos. O "Fundo Milênio"
proposto pelo governo Bush ampliaria a verba, mas para apenas
0,13% do PIB.
Bono ficou furioso, declarando
que os projetos demonstravam o
contrário, que o poço era "um
exemplo dos motivos pelos quais
precisamos de dinheiro sério para
o desenvolvimento. E não um
exemplo de que não precisamos
disso. E, se o secretário não consegue ver a verdade, teremos de lhe
dar um novo par de óculos e um
novo par de orelhas".
Talvez a maneira mais simples
de refutar O'Neill seja relembrar a
proposta lançada no ano passado
pela OMS (Organização Mundial
da Saúde), a qual deseja fornecer
aos países pobres produtos como
antibióticos e redes contra mosquitos tratadas com inseticidas.
Se os Estados Unidos tivessem
apoiado o programa proposto,
que a OMS estimava salvaria 8
milhões de vidas ao ano, a contribuição norte-americana teria sido
de cerca de US$ 10 bilhões anuais
-cerca de US$ 0,05 ao dia por cidadão norte-americano, mas ainda assim uma duplicação do dispêndio atual com assistência internacional. Salvar vidas -até
mesmo vidas africanas- custa
dinheiro.
Mas será que O'Neill realmente
é cego e surdo diante das necessidades da África? Provavelmente
não. Ele está entre a cruz e a caldeirinha: quer demonstrar preocupação com a pobreza do mundo, mas as prioridades de Washington são outras.
Uma demonstração notável
dessas prioridades é o contraste
entre a rejeição seca do governo
Bush à proposta da OMC e o esforço de ambos os partidos norte-americanos para tornar permanente a revogação, recentemente
aprovada, do imposto sobre heranças. O que é notável nesse esforço é que os oponentes do imposto sobre heranças nem sequer
tentaram argumentar que reduzir
os impostos sobre os herdeiros ricos beneficiaria a sociedade como
um todo. Em lugar disso, eles fizeram um apelo emocional -queriam que sentíssemos a dor daqueles que pagam o "imposto da
morte". E a história triste funcionou. O Congresso rejeitou as propostas de reter o tributo, mesmo
que elas elevassem o limite de
isenção -o limite até o qual cada
espólio está isento de tributos-
para US$ 5 milhões.
Vejamos como a matemática
funciona quanto a isso. Um imposto sobre heranças com limite
de isenção de US$ 5 bilhões afetaria apenas umas poucas famílias
muito ricas. O valor médio das
heranças que ele tributaria seria
de US$ 16 milhões. Se o imposto
sobre o valor de espólio superior
ao limite de US$ 5 milhões fosse
tributado pela alíquota anterior a
2001, cada família reteria pelo menos US$ 10 milhões -o que não
me parece miséria nenhuma-, e
o governo arrecadaria US$ 20 bilhões a mais em impostos a cada
ano. Mas não, o imposto precisa
ser revogado integralmente.
Assim, eis as nossas prioridades. Diante de uma proposta que
salvaria as vidas de 8 milhões de
pessoas a cada ano, muitas das
quais crianças, nós hesitamos devido ao custo. Mas, quando solicitados a oferecer renda igual a duas
vezes esse custo a fim de permitir
que 3.300 famílias afortunadas recebam o valor pleno de sua herança de US$ 16 milhões, em lugar de
reles US$ 10 milhões, não hesitamos. Que nenhum herdeiro seja
deixado para trás!
O que nos conduz de volta à viagem de Bono e O'Neill. O astro do
rock talvez esperasse que os funcionários de primeiro escalão do
governo norte-americano fossem
simplesmente ignorantes, e não
indiferentes -talvez eles simplesmente não percebessem que
condições reinam nos países pobres e de que maneira a assistência internacional poderia fazer a
diferença. Ao mostrar a O'Neill as
realidades da pobreza e os benefícios que a assistência poderia prover, Bono esperava encontrar e
acalentar a centelha de compaixão que certamente deve existir
nos corações daqueles que se alegam conservadores compassivos.
Mas ele ainda não encontrou o
que estava procurando.
Paul Krugman, economista, é professor
na Universidade Princeton (EUA). Este
artigo foi originalmente publicado pelo
jornal "The New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci
Texto Anterior: Opinião econômica - Gesner Oliveira: Como anda a economia Próximo Texto: Panorâmica - Riqueza americana: Encomenda à indústria cresce 1,2% dos EUA Índice
|