São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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SALTO NO ESCURO
Reunião este mês pode definir a retomada de Angra 3, usina na qual o país já investiu US$ 700 milhões
Crise reaviva debate sobre opção nuclear

CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL

No auge da crise no setor energético, sem nenhum plano de longo prazo, com a população em pânico e o governo escorregando na queda de popularidade, a continuidade das obras da usina nuclear Angra 3 começa a ser cogitada em meio a enorme polêmica.
O Brasil já investiu quase US$ 700 milhões na usina que, segundo os planos, estaria pronta em 1988 e vai precisar de mais de US$ 1,7 bilhão para concluí-la num prazo mínimo de cinco anos. A maioria de seus equipamentos já está no país, o que, em termos de manutenção, representa um gasto anual de R$ 20 milhões.
O projeto tem a seu favor a crise -argumento que não se sustenta por uma razão óbvia: Angra 3 não resolveria o problema imediato. Tem uma legião de defensores no governo do Rio de Janeiro, que acenam com a participação da indústria nacional no projeto. Tem a pressão da Eletronuclear, empresa que administra o complexo Angra e que concentra seu foco de defesa no investimento já feito em Angra 3, na posição do país como detentor da sexta maior reserva de urânio (o combustível) do mundo e no fato de a nuclear ser uma energia "limpa" em termos ambientais.
Tem ainda a benção do prefeito de Angra dos Reis, Fernando Jordão, do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Tarcísio Reis, seu secretário de Governo, diz que o município de 120 mil habitantes precisa dos empregos que seriam proporcionados com a continuidade das obras, dos outros benefícios que poderiam advir da decisão, como a melhoria das estradas, e que a população já se acostumou com a presença de usinas nucleares. "A probabilidade de um acidente é remota, de uma em 1 milhão", diz Alexandre Soares, coordenador municipal de defesa civil.
Nenhum desses argumentos, entretanto, torna fácil a decisão de acionar Angra 3, que será tomada depois da próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), prevista para ocorrer este mês, quando deverá ser apresentado um relatório com os prós e contras da continuidade das obras e encaminhado um parecer (favorável, ao que tudo indica) do conselho ao presidente da República.

Rejeição global
Se o parecer for a favor da conclusão das obras, o presidente estará com uma verdadeira bomba nas mãos. Tão explosiva que será repassada ao Congresso. "A energia nuclear provoca uma aversão global", diz o físico nuclear José Goldenberg, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e integrante do CNPE. "A radioatividade é um tipo de insulto ambiental que a humanidade desconhecia e que, ao conhecê-lo, reagiu de uma maneira muito negativa porque, contrariamente a outros poluentes, é fatal, provoca mutações genéticas, e isso mexe muito com quase todo mundo", diz.
Como físico nuclear, Goldenberg ocupa uma posição equilibrada na polêmica de Angra 3. Ele sabe que o Brasil tem urânio (o que, diz, conduz a um raciocínio errado, já que os reatores usam urânio enriquecido, que custa caro), tem tecnologia para a fabricação do combustível e das centrais, alguns dos argumentos a favor da continuidade das obras apresentados pela Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben). Mas diz que é a favor de um esforço pelo uso de uma tecnologia que não abuse da sorte como abusa a energia nuclear.

O mundo atômico
É uma constatação que não se questiona internacionalmente. A Suécia, que tem 40% da eletricidade baseada na energia nuclear, decidiu em plebiscito fechar todas as usinas até 2010. O mesmo recurso democrático conduziu ao mesmo destino a energia nuclear na Áustria e na Itália (a Áustria até abandonou uma usina praticamente pronta). A Alemanha, graças à participação do Partido Verde no governo, limitou a 30 anos a sobrevivência de suas usinas.
Os Estados Unidos não constróem nenhuma usina nuclear há mais de 25 anos (chegando a desativar algumas), em razão dos custos, da rejeição popular e da ausência de resposta sobre o que fazer com o lixo. Por razões semelhantes, o Reino Unido parou a expansão dos investimentos nucleares, a Holanda está descomissionando suas usinas, a Espanha vive uma fase de moratória, Bélgica e Suíça estão abandonando seus planos.
A Argentina, com duas centrais, paralisou a construção da terceira, Atucha 2. O Canadá fechou seis usinas, que provavelmente não serão religadas por fortes pressões. Na América Latina, além de Brasil e Argentina, apenas o México tem um reator nuclear em funcionamento. Cuba também desistiu no começo do caminho.
A França, um dos poucos países desenvolvidos que colocam a energia nuclear como alternativa de futuro, passa por um processo de desaceleração. "Hoje, a energia nuclear tem como mercado países com pouca democracia, que não fazem plebiscito e não discutem a questão com a população", diz Ruy de Goes, especialista responsável durante dez anos pelas questões nucleares na sede brasileira do Greenpeace.

Opção cara
Defensores de uma matriz energética diversificada que exclua a opção nuclear dizem que todas as tecnologias de geração de energia podem provocar fatalidades, mas nenhuma atinge gerações futuras, como a radioatividade. Daí a aversão global e os grandes investimentos feitos pela indústria para tornar a energia nuclear mais segura, o que resultou num aumento de custos significativo. "Não posso ser favorável à opção nuclear, pois estou preocupado com os preços finais da energia no Brasil", diz Roberto Pereira d'Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina).
Ele observa que a opção nuclear é cara e, se não for cobrada na tarifa, será cobrada nos impostos. "A conclusão de Angra 3 deve ser discutida com mais profundidade perante outras alternativas."
Angra 3 custaria US$ 2,4 bilhões e levaria pelo menos cinco anos para produzir 1.300 megawatts, o que significa US$ 2.000 por megawatt; a energia termoelétrica a gás forneceria o mesmo megawatt pela metade do custo e levaria de um a dois anos para entrar em funcionamento. Isso sem contar o chamado "preço de descomissionamento", que significa o seguinte: o preço alto que se paga quando acaba a vida útil das usinas nucleares, de 30 a 40 anos, e o local de sua instalação tem que ser descontaminado.

Desastre já houve
Há quem afirme que o grande desastre nuclear já aconteceu: gastou-se algo em torno de US$ 20 bilhões para produzir muito pouca energia com Angra 1 e 2, gerando outra "polêmica nuclear" em torno do custo real das duas usinas. Dependendo de como se faz a conta, o resultado é diferente, mas nunca competitivo.
Em 1995, o Tribunal de Contas da União apontava o custo de Angra 1 como sendo US$ 3,5 bilhões, para a produção de 600 megawatts, o que é caríssimo. Angra 2 deve ter saído por mais de US$ 10 bilhões, segundo cálculos correntes no setor, o que talvez a incluísse no "Guinness Book" como uma das mais caras usinas nucleares do mundo. Angra 2 produz 1.200 megawatts (o Brasil tem hoje uma capacidade instalada de 60 mil megawatts).
José Goldenberg diz que a questão principal não é ser a favor ou contra a opção nuclear. Ele deixa isso para os ambientalistas militantes. "O importante é observar que não se trata de uma opção razoável para o Brasil, exceto para políticos lobistas e vendedores de equipamentos." Importante também é ter consciência de que se está comprando uma tecnologia de um fabricante que deixou de fabricar a usina dele.

Máquina de escrever
Do ponto de vista tecnológico, especialistas comparam o investimento em usina nuclear ao investimento, hoje, numa fábrica de máquinas de escrever. "É uma tecnologia que já está em decadência, não é nem pode ser vista como energia do futuro", diz Ruy de Goes. "Reativar esse gigante é uma decisão contrária aos interesses da nação, vai-se gastar uma nota e não se pode esquecer que Angra 2 levou 20 anos para entrar em operação", diz Goldenberg."

Lobby
O lobby da indústria que fornece equipamentos é poderoso. Alexander Machowetz, porta-voz da Framatome ANP, joint venture franco-alemã entre a Siemens, da Alemanha, e a Framatome, companhia francesa e sucessora legal do grupo Siemens no tratado nuclear Brasil-Alemanha, confirmou na primeira semana de junho que a empresa entrou com um pedido de crédito no governo alemão para construir Angra 3 e que assim que o o crédito for aprovado a construção de usina será retomada.
Difícil será explicar às próximas gerações por que o país optou pela contramão da tendência mundial, num momento em que seus fornecedores decidem desligar todas as suas usinas nucleares e, ao mesmo tempo, oferecem facilidades para incluir Angra 3 na paisagem de enseadas, pontões, ilhas paradisíacas e águas cristalinas de Angra dos Reis. A explicação dos fornecedores para esse empenho é a mais fácil de toda a história: ali, onde turistas vêem um paraíso formado por 365 ilhas e 2.000 praias, a indústria alemã, espantada da Turquia, que cancelou no começo deste ano o projeto de construção de oito usinas nucleares, vê uma oportunidade de ouro para amenizar a crise que enfrenta em nível internacional.


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