São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Espumas flutuantes

LUIZ GONZAGA BELLUZZO A vulnerabilidade externa e a fragilidade fiscal que hoje nos atormentam foram criadas por obra e graça das políticas de câmbio valorizado e de juros elevados empreendidas pelos sábios do governo Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 1999, a pretexto de abrir a economia. Na última semana, talvez até mesmo os recalcitrantes tenham compreendido que as taxas de juros -apesar do câmbio flexível- seguem prisioneiras das necessidades de financiamento do balanço de pagamentos.
O chamado passivo externo líquido ganhou "momentum", aproximando-se rapidamente dos US$ 500 bilhões. Na cadência do mesmo samba vêm crescendo as frações da dívida pública mobiliária dolarizada e com juros pós-fixados.
A boa nova é que a opinião "soi-disant" bem informada, depois de algum tempo, percebeu o tamanho da confusão: as criaturas do caipirismo globalizado não só geram compromissos crescentes em moeda forte -inchando o déficit em transações correntes- como impedem a almejada estabilização do quociente entre a dívida interna e o PIB (Produto Interno Bruto), golpeando as finanças públicas. A má notícia é que os financiadores potenciais parecem não estar dispostos a botar mais dinheiro barato para fechar os buracos.
Por isso o Copom tem de lidar, em primeira e em última instâncias, com os humores que ora guiam as decisões dos possuidores de riqueza -tanto os de fora como os da casa, pouco importa. Três são os demônios que infernizam a vida do dr. Armínio Fraga, presidente do BC: o agravamento da crise cambial, o crescente desequilíbrio financeiro do setor público e as dificuldades para manter a política de metas inflacionárias.
O leitor atilado há de ter percebido que uma coisa tem a ver com a outra. A percepção de fragilidade do balanço de pagamentos estimula a demanda por dólares -por motivo ou de precaução ou de especulação-, o que suscita o descontrole do câmbio e impõe a alta dos juros. A ação da dupla dinâmica -câmbio e juros- encarece o custo da dívida do governo e descarrila o comboio da inflação.
Numa economia hipotética, sem relações com o exterior, a taxa de juros de curto prazo, manejada pelo banco central, seria a pedra angular do sistema de provimento de liquidez para os negócios privados. Ela deveria exprimir a capacidade das autoridades monetárias de -alterando as reservas do sistema bancário- mudar as condições de liquidez, isto é, a maior ou menor facilidade de negociação das dívidas e dos ativos financeiros de distintos prazos de maturação nos mercados secundários, de modo a afetar o estado de espírito dos empresários em relação à venda de novos títulos de dívida destinados a financiar a produção.
O êxito ou o fracasso das manobras do BC está submetido, como é óbvio, ao estado de expectativas dos possuidores de riqueza. Keynes considerava fundamental para o sucesso da política monetária a divisão de opiniões entre "altistas" e "baixistas". Isso significa que, quando a opinião dos mercados está dividida, não ocorrem alterações no "lado monetário" capazes de perturbar a trajetória de equilíbrio da economia. Se, ao contrário, as opiniões se concentram numa só direção, a ação do BC pode não ser eficaz para estabilizar a economia. A experiência japonesa recente, por exemplo, mostra que não dá resultado baixar os juros quando o estado de expectativas dos empresários ou dos consumidores está muito deprimido.
Os bancos centrais nacionais são também partícipes de um sistema universal e hierarquizado de pagamentos e de liquidez. No mundo de hoje, da liberalização das contas de capital e da desregulamentação das finanças, temos duas situações distintas. Os banqueiros centrais que administram moedas conversíveis -aquelas que denominam em grande escala as transações financeiras e de mercadorias no mercado mundial- não precisam, dentro de certos limites, "esquentar a cabeça" com as flutuações entre suas moedas. Para elas há sempre um "ponto de compra" ou existem mercados de hedge líquidos e profundos, onde os agentes "comprados" e "vendidos" nas distintas moedas podem buscar proteção contra eventuais flutuações cambiais a um custo conveniente.
Já o resto da turma -o pessoal que administra moedas inconversíveis- está obrigado, neste mundo globalizado e de capitais inquietos, a manter reservas elevadas em divisa forte e a produzir excedentes comerciais de forma permanente. Os bancos centrais dos países de moeda inconversível, quando excessivamente expostos aos movimentos de capitais, dificilmente conseguem comandar a política monetária, mesmo quando adotam regimes cambiais mais flexíveis. Uma situação de fragilidade financeira externa introduz um constrangimento grave no manejo das taxas de juros domésticas.
Caso venha a ocorrer, como vem ocorrendo agora, uma "polarização de opiniões" em torno da trajetória do câmbio, a tentativa de contrair a liquidez, mediante a elevação das taxas de juros, pode levar a flutuações pronunciadas do nível de atividade, oscilações nos preços dos ativos, sem necessariamente afetar o estado de expectativas quanto ao comportamento da inflação.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 58, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).



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