São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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LUÍS NASSIF

O verdadeiro Jacob e Waldir

Nos anos 50 e 60, a grande discussão instrumental brasileira era sobre quem era maior: o bandolim de Jacob ou o cavaquinho de Waldir Azevedo. Garoto havia falecido em 1954, antes da explosão dos LPs.
Recentemente a Petrobras patrocinou a digitalização de uma coleção de discos com 12 mil músicas do começo do século até os anos 60. O banco de dados está no IMS (Instituto Moreira Salles) do Rio de Janeiro e, em breve, estará disponível na internet.
Tem de tudo. Música digitalizada organizada por gênero, nome, autor, intérprete, datas. Procura-se a música e ouve-se na hora. Em breve, a digitalização revolucionará a pesquisa musical brasileira, por permitir confrontar datas, influências, gêneros.
Tem recortes de jornais também digitalizados. É um acervo precioso, que até me permitiu momento particular de satisfação. Sempre tive para mim que as primeiras reportagens contemporâneas sobre Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, tinham sido de minha autoria, uma na "Veja", em 1978 (a propósito de um LP lançado por Paulo Tapajós, em cima de gravações de Garoto na rádio Nacional), e outra no "Jornal da Tarde", por volta de 1980, ambas não assinadas. No acervo, essas duas são as únicas sobre Garoto naquele período e nas décadas anteriores.
Garoto era virtuose em qualquer instrumento de corda. Embora tenha revolucionado o violão, com suas composições e seu modo de tocar sem as unhas, seu talento maior era nos instrumentos que usavam palheta (banjo, cavaquinho, violão tenor e bandolim). Isso era admitido pelo maestro Radamés Gnatalli.
Alguns anos atrás, recebi de presente uma fita de Garoto ao bandolim interpretando o choro "Dinorá". Todos os recursos que Jacob utilizaria a partir de fins dos anos 50 até a sua morte -que aprimoraria, que desenvolveria- estavam ali, sintetizados em uma única faixa de Garoto.
No choro brasileiro, durante décadas proliferaram duas escolas de bandolim. Uma pernambucana, desenvolvida por Luperce Miranda, vigorosa, ritmada, rápida, e que deixou descendentes fantásticos, como João Macambira, com seus quase 70 anos, e Jorge Cardoso, bem mais novo -ambos da mais fina elite do bandolim brasileiro. Outra escola foi a carioca, de Jacob do Bandolim, com alguma influência da guitarra portuguesa e uma sofisticação de sons sem paralelo.
Havia o hábito de dizer que Luperce tinha mais técnica, e Jacob, mais coração. Confundia-se técnica com agilidade. Luperce tinha mais agilidade, mas Jacob tinha mais técnica, por sua capacidade de "inventar" sons, de saber utilizar a nota certa, o recurso certo.
A influência de Jacob foi tão massacrante que praticamente dominou o bandolim brasileiro por quase três décadas. São filhos dessa escola Déo Rian, Joel e Ronaldo, no Rio, e Izaias, em São Paulo.
Apenas no final dos anos 80 começaram a surgir bandolinistas libertados da influência de Jacob, como o craque Miltinho Tachinha e o Aleh Ferreira, de São Paulo, o Hamilton de Holanda, de Brasília, e o Pedro Amorim, do Rio. E, obviamente, Armandinho, que emerge como um gênio maior.
No início dos anos 80, quando o selo Eldorado lançou o LP "Inéditos do Jacob", escrevi artigo polêmico, sustentando que Jacob se valia do expediente de se basear em temas de terceiros para desenvolver suas composições, algo que Tom Jobim utilizou à exaustão, que não pode ser caracterizado como plágio, mas que, de qualquer forma, relativizava o papel de criador de ambos.
O acervo do IMS tem seis solos de Garoto ao bandolim e mais alguns ao cavaquinho. As gravações vão de 1946 a 1949, pouco antes de Waldir Azevedo estourar com "Delicado" e bem antes de Jacob dar seu grande salto de qualidade, no final dos anos 50.
Pesquisei as faixas, cliquei na música e, do alto-falante do computador, vieram os sons de Waldir Azevedo. Mais que isso, veio um Jacob inteiro, completo, os mesmos sons, a mesma sequência, os mesmos recursos e, em alguns casos, as mesmas músicas... só que gravadas dez anos antes, e por Garoto.
Nem se tire o mérito do mestre Jacob. Seu brilho maior está em seus cinco últimos LPs. Desses, os três primeiros são Garoto puro. Mas os dois últimos -incluindo a gravação caseira de "Os Saraus de Jacob"- são suficientes para garantir sua manutenção no Olimpo musical brasileiro.
Garoto não foi apenas o pai do moderno violão brasileiro e da bossa nova. Foi também o pai musical da maior escola de bandolim e da maior escola de cavaquinho do país.

E-mail - LNassif@uol.com.br



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