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RUBENS RICUPERO
Questão de decálogo
Nem esperança, nem alegria, mas o contrário desses sentimentos é o que paira no
ar neste domingo de eleição
"...ELEIÇÕES reais, entregues pelo
governo ao país, sem preocupação do seu partido, eram uma
pura utopia no estado atual da nossa moral política. Não era (...) uma
questão de lei; era matéria de consciência, de probidade; uma reforma
de costumes, tão difícil de impor como a prática de um dos Mandamentos a uma sociedade que tivesse perdido a noção dele".
Que diria Nabuco da moral política hoje, não da que era atual nos
anos 1880 evocados nesse trecho de
"Um Estadista do Império"? Muito,
quase tudo, do debate político-eleitoral da monarquia está superado
pela realização do que parecia longínquo: a abolição, a República, a
Federação, o fim das eleições indiretas, das exclusões do direito de voto por razões de renda, sexo, analfabetismo.
A expansão do eleitorado atingiu
proporções estonteantes. Após a
violenta contração promovida pela
Lei Saraiva para introduzir a eleição
direta, o corpo eleitoral do Império
era de 145.296 pessoas, menos de
1,5% da população de 10 milhões de
habitantes. Mesmo na República, os
votantes oscilavam entre 2,3% e
3,4% até 1930. Nas eleições de hoje,
estão qualificados a votar mais de
125 milhões de população de 187
milhões, quase 67% do total. Haverá ainda alguma continuidade entre
realidades tão diferentes?
Alcançamos o sufrágio universal
completo, incluindo até menores
entre 16 e 18 anos. Tampouco há
comparação de qualidade, eficiência, sigilo, honestidade, entre o processo eleitoral de agora e o que produzia câmaras unânimes na monarquia, eleições a bico-de-pena na República Velha. Mesmo os grotões, os
currais eleitorais, domínio do "coronelismo, enxada e voto", vão se
tornando espécie em extinção.
Graças a essas mudanças, um partido de raiz popular elege presidente um líder operário. Longe de suscitar ameaça de golpe como em
1950 e 1955, o resultado excita onda
de esperança e alegria. Tudo isso teria feito sonhar José Bonifácio, o
Moço e Joaquim Nabuco, no Império, ou os tenentes que morreram
pelo voto secreto, nos anos 1920.
Não obstante, nem esperança, nem
alegria, mas o contrário desses sentimentos é o que paira no ar neste
domingo.
É tamanha a desproporção entre
a gravidade da corrupção, a desfaçatez criminosa recente e a insignificância ou ausência de castigo que a
sensação da inutilidade do esforço
provoca mais abatimento e desânimo do que indignação. O elevado
número de pessoas que tencionam
anular o voto expressa esse estado
de espírito com eloqüência. Nabuco
talvez encontrasse a razão do desencanto no que chamava de matéria de consciência, probidade, moral política.
Em última análise, é verdade. Não
estou certo, contudo, de que parte
da solução não seja questão de lei. O
esgotamento do programa de reformas do passado não evitou a deterioração a que se assiste dos costumes políticos. Para alguns, isso prova que as reformas são inúteis,
quando apenas prova que, se certos
problemas do passado foram resolvidos, outros, velhos e novos, continuam à espera de solução.
O financiamento de partidos, a infidelidade partidária, os partidos de
aluguel, a manipulação pelos meios
de comunicação, a politização de
cargos em prejuízo da profissionalização do serviço público e das estatais, a adoção do voto distrital misto,
o endurecimento do castigo contra
a corrupção e crimes políticos, são
alguns desses problemas.
Além das leis, porém, trata-se da
reforma de costumes. Esses só evoluem por meio de uma educação para os valores, de movimentos religiosos, espirituais, ideológicos. Por
muito tempo, esse papel foi preenchido pelo debate sobre socialismo e
justiça. A crise do socialismo deixou
campo livre para a luta crua do poder pelo poder. É preciso ocupar o
vazio. Ajudaria muito que o presidente lembrasse que "o fraco rei faz
fraca a forte gente". E, em vez de solapar a moral com o argumento que
"sempre foi assim" ou "todos fazem
igual", encarnasse os valores republicanos capazes de redimir os costumes políticos.
Não é a sociedade que perdeu a
noção dos mandamentos. O que falta são líderes capazes de mobilizar
as energias ora adormecidas a fim de
que se cumpram as leis e o decálogo.
RUBENS RICUPERO, 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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