São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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VINICIUS TORRES FREIRE

Classes numa eleição sem classe

Melhoria no bem-estar dos mais pobres não explica a eleição mais polarizada em duas décadas de democracia

NENHUMA ELEIÇÃO presidencial foi tão polarizada como a de 2006. Desde que o país tornou-se uma democracia de massa, a partir de 89, jamais os votos dos eleitores mais ou menos instruídos, mais ou menos ricos, do Nordeste e do Sudeste, foram tão diferentes como na disputa entre Lula da Silva e Geraldo Alckmin. E após quase um ano de campanha e pesquisas, a noção de que o voto de 2006 é polarizado parece senso comum, assim como sua explicação automática e clichê: "Bolsa-Família".
Mesmo se a explicação do contraste Lula-Alckmin pudesse ser restrita à melhoria do nível de bem-estar social, o Bolsa-Família seria coadjuvante. O programa atinge 11 milhões de famílias, uns 20 milhões dos 125 milhões de eleitores. Importa mais o aumento do poder de compra do salário mínimo sob Lula, de uns 45% (semelhante ao do primeiro FHC, mas muito acima da estagnação do segundo tucanato).
Isso equivale quase a dizer que aumentou nessa proporção o poder de compra de cerca de 60% das pessoas com renda. De resto, aumentos do mínimo também reajustam os benefícios da Previdência, que respondem por 92% da renda social dos brasileiros (a que não vem do trabalho nem de ganhos de capital). A redução da taxa de miséria foi alta sob Lula, mas semelhante à da transição do Real, que elegeu FHC.
O ritmo de queda da desigualdade sob Lula foi um pouco superior ao do primeiro FHC, mas o efeito real desse indicador é imperceptível para o cidadão comum. A diferença mais gritante na estatística é que, sob Lula, prosseguiu estagnada ou cadente a renda do que seria algo como uma classe média (entre R$ 1.600 e R$ 3.200 mensais), contra o crescimento "chinês" da renda dos 30% mais pobres. Números são sedutores, pois induzem o observador, animado com sua objetividade, a parar de pensar.
Mas nada mais teria mudado na percepção social e política dos brasileiros em 21 anos de democracia? Mudou. Há mais debate e difusão de informações sobre a desigualdade. São 21 anos de organização livre e de sedimentação de movimentos políticos e sociais populares. A identidade política e social dos pobres se transformou, algo notável em sinais tão díspares como letras de "rap" e lideranças populares que fazem questão de marcar sua diferença em relação a intelectuais e "elites".
Um ex-pobre tornou-se presidente com o compromisso político de melhorar a vida do pobre, o que fez, não importa aqui se de modo duradouro ou "populista". Lula ressalta diferenças sociais. Mesmo demagogicamente, polariza o debate diante de um público que não é a massa informe descrita nos velhos livros sobre populismo. Esse público, que conhecemos mal, faz um "voto de classe"? Tal idéia talvez esteja morta.
Mas uma nova rede de "identidades pobres" influencia o voto no Brasil. O governo Lula e seu aparelhismo mafioso, de tendências autoritárias, foi incapaz de promover inovação institucional e de alterar a estrutura conservadora da economia. Mas voto depende de interesses imediatos, da percepção do cumprimento de contratos políticos, de imagens do que deve ser o país e da identidade política do eleitor, e não de juízos intelectuais sobre políticas públicas.


vinit@uol.com.br

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