São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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RUBENS RICUPERO

Nada é definitivo


Cresce a sensação de que a nova Espanha deverá provar que as instituições têm solidez para resistir aos ventos contrários

A ESPANHA do último quarto de século tem sido a grande esperança dos latino-americanos desanimados com seu persistente fracasso institucional desde a independência. Durante muito tempo, atribuía-se ao fatalismo do modelo herdado de espanhóis (e lusos) a incapacidade de construir instituições capazes de garantir estabilidade política com progresso econômico e igualitarismo social nos países ibéricos.
Muitos dos pensadores e políticos latino-americanos iam buscar no patrimonialismo, na falta de liberdades locais e tradição democrática da península a raiz dos nossos próprios vícios. Esses adquiriam, assim, o caráter de doença hereditária e incurável, como quase todas as deformações carregadas pelo DNA.
A prolongada decadência em que mergulharam as ex-metrópoles era a confirmação viva de que uma espécie de enfermidade degenerativa acometia os dois únicos países da Europa ocidental que haviam "derrotado" a Reforma religiosa e a Revolução Francesa, aferrando-se à Inquisição até bem entrado o século 19. As ditaduras de Salazar e Franco, a sanguinária Guerra Civil Espanhola, o espírito retrógrado perceptível na atmosfera de Lisboa e Madri até o início dos anos 1960 só reforçavam a impressão de irremediável declínio.
O êxito da transição democrática e européia de Portugal e Espanha, sobretudo dessa última, e a sabedoria do compromisso histórico que permitiu o Pacto de Moncloa no plano político e o milagre econômico espanhol vieram demonstrar que, até no berço da hispanidade, era possível romper a seqüência de catástrofes institucionais e edificar democracia moderna e dinâmica.
O progresso foi realmente tão rápido que, após dez anos de crescimento a 3,7% anuais, a Espanha ultrapassou a Itália em riqueza per capita, ocupando o sexto lugar da União Européia. Um dos "slogans" eleitorais do primeiro-ministro Zapatero era a promessa de arrebatar da França a quinta posição. De repente, contudo, a situação começa a dar sinais de esgotamento. Como nos Estados Unidos, confiou-se demais na bolha imobiliária, que vinha sustentando a expansão, graças à melhoria do nível de vida e aos imigrantes (700 mil por ano, desde 2000). O estouro da bolha passou a frear o crescimento e o consumo, apesar de inflação que se mantém em nível superior ao do resto da Europa.
O velho fantasma do confronto entre direita e esquerda volta a reaparecer, do mesmo modo que as divisões com a Igreja em matéria de moral e família. O país tem dificuldade em lidar com o passado e a Guerra Civil, com a anistia e as vítimas. Não conseguiu aprovar nem uma letra inócua para o Hino Nacional, que continua mudo. O fiasco das negociações com o terrorismo basco deixou o governo em posição de fraqueza diante de uma direita truculenta.
Na hora do triunfalismo, esquecia-se que, nos anos 1990, a ajuda européia chegou a representar 1,7% do PIB (Produto Interno Bruto) da Espanha, o que, além das instituições, ajuda a explicar o milagre. Até 2013, ela terá ainda a receber 31 bilhões, mas isso agora é apenas 0,4% da economia. Na véspera da eleição do dia 9, cresce a sensação de que a nova Espanha deverá provar no teste da adversidade que suas instituições possuem, de fato, solidez para resistir aos ventos contrários.


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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