São Paulo, segunda-feira, 02 de agosto de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Idéias caídas do céu

JOÃO SAYAD

Deus criou o mundo em seis dias e descansou. Deu patas aos animais que andam sobre a terra, escamas e nadadeiras aos peixes. Animais que vivem no mar e andam sobre patas, como a lagosta, ou peixes que não têm escamas não obedeceram à organização divina do mundo -são obras do diabo. Por isso, não podiam fazer parte da dieta dos judeus.
Imagina-se que o dogma reflete a sabedoria antiga sobre saúde pública. Mas historiadores afirmam que porcos, por exemplo, proibidos na dieta dos judeus, eram menos sujeitos a doenças nos tempos bíblicos do que bois e cavalos. A dieta foi derivada de uma interpretação particular da cosmogonia bíblica -peixes no mar, animais na terra e aves no céu.
Jesus, Deus feito Homem, foi crucificado em Jerusalém. Portanto Jerusalém deve ser o centro da Terra, e a Terra, o centro do mundo, imóvel e em torno da qual giram todos os corpos celestes. Galileu negou o que havia descoberto -que a Terra era móvel- para salvar a própria vida. O dogma da Igreja Católica era descartável. Precisava ser mantido apenas para salvar a "credibilidade" dos intérpretes católicos da Bíblia naquela época.
Se o Vietnã fosse tomado pelos comunistas, a China controlaria o sudeste da Ásia e, depois, o mundo. Os países da Ásia cairiam sob o domínio comunista, um após o outro, como peças enfileiradas de um jogo de dominó. Milhares de americanos morreram, e os Estados Unidos foram derrotados sem saber que, por mil anos, os vietnamitas se opuseram à poderosa China vizinha. O Vietnã jamais se prestaria a ser a primeira peça a cair no jogo de dominó. Hoje, a China é o centro dinâmico da expansão do capitalismo mundial. Mas a guerra dolorosa foi até o fim para salvar a imagem política dos seus defensores.
Materialistas afirmam que as idéias não caem do céu. São peças que se encaixam perfeitamente para atender os interesses do capital. Não há espaço para engano, estultice ou dogmatismo redundante. Os juros altos brasileiros devem servir ao interesse dos bancos, do capital ou de alguma outra coisa.
O total de despesas do governo é pago ou por impostos, ou por dívida pública, ou por dinheiro emitido. A parcela paga por impostos não causa inflação, pois o gasto do governo é compensado pelo imposto que o setor privado pagou e não pode gastar. O dogma monetarista afirma que, se for pago por dívida pública, é compensado pelo dinheiro que o setor privado aplicou na dívida pública e, portanto, não pode mais gastar.
Nos EUA, os fundos de investimento em Treasury Bills garantem liquidez imediata aos compradores de dívida pública. Na economia capitalista, todas as coisas, mercadorias ou títulos de crédito, procuram a liquidez. A dívida pública americana não "enxuga a liquidez".
A dívida pública brasileira tem prazo muito curto, é indexada aos juros do dia ou à taxa de inflação. Tem todas as características do dinheiro -pode ser usada imediatamente pelo seu portador para comprar uma casa, uma ação, pagar a conta de luz ou uma viagem de férias.
Pagar as despesas do governo com dívida pública ou com dinheiro não faz muita diferença para a liquidez do setor privado. É trocar seis por meia dúzia. Se os juros são impagáveis mesmo com superávit primário de 4,5%, o saldo da dívida pública aumenta e, conseqüentemente, aumenta a liquidez da economia.
Mas a "boa teoria monetária brasileira" continua insistindo em financiar o governo por títulos da dívida pública com juros impagáveis para evitar o "excesso de liquidez" que se transformaria em inflação.
O resultado é falta de crédito para o setor privado, crescimento da dívida pública e crise financeira no setor público, que precisa arrecadar cada vez mais impostos e economizá-los para pagar uma conta de juros cada vez maior.
A quem serve a política de juros altos? O economista da Febraban afirma na Folha que a redução dos juros é questão de "determinação", ou seja, vontade. Os juros dos bancos privados são altos por causa de reservas compulsórias (boa parte aplicada em títulos públicos), impostos sobre transações (necessários para pagar os juros da dívida pública). É um circulo vicioso que precisa ser rompido.
Grandes bancos brasileiros criticam os juros altos. Grande parte dos seus ativos está investida em crédito para o governo, dívida pública. A manutenção dos juros altos e impagáveis torna a dívida pública pouco atraente. Professores laureados na academia internacional criticam os juros altos do Brasil.
Qual a boa explicação materialista para os juros escorchantes?
Só o Banco Central do Brasil defende os juros que pratica. Defende a qualquer custo a interpretação particular do regime de metas de inflação que escolheu para o caso brasileiro.
O Copom afirma que a inflação pode ser maior do que a meta de 4,5% porque a indústria brasileira está utilizando totalmente a capacidade de produção. Precisa investir para garantir o famoso crescimento sustentado. A última ata do Copom ameaça aumentar os juros ainda mais. Como investir com juros reais de 10% ao ano?
A solução é simples: reduzir os juros e se livrar do dogma caro e perigoso que só interessa às autoridades que escolheram a forma errada de aplicar o regime de metas de inflação no Brasil.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail: jsayad@attglobal.net


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