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DEMÔNIO DO CAPITALISMO
Investidor é capaz de criticar capitalismo que o tornou bilionário
Soros é mais complexo que imagem de megaespeculador
CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Davos
Se houvesse uma eleição universal para desenhar a imagem
de um suposto demônio do capitalismo, certamente esse rosto se
aproximaria ou seria até igual ao
de George Soros.
Esse húngaro naturalizado
norte-americano chega aos 69
anos com a imagem do megaespeculador, o homem capaz de
destruir moeda após moeda.
Basta citar a menção a Soros
feita na segunda-feira pelo primeiro-ministro alemão, Gerhard Schroeder, no encontro do
Fórum Econômico Mundial:
"Se até George Soros -e ele
precisa saber, tendo ganho bilhões pela especulação- pede
urgência na introdução de fatores reguladores (sobre o movimento de capitais), então é mais
que tempo de passar a uma negociação sobre a arquitetura financeira internacional".
Como? Um especulador pedindo para regular exatamente
os movimentos que lhe permitem ganhar dinheiro?
Sim. O aparente paradoxo basta para revelar como Soros é um
homem muito mais complexo
do que o retrata o rótulo de megaespeculador ou, na hipótese
mais benigna, megainvestidor.
É, sim, verdade que ele quebra
moedas. A lenda (ou os fatos) dizem que venceu uma queda-de-braço com o Banco da Inglaterra
e abateu a libra esterlina, forçando sua saída do sistema europeu.
É também verdade (e ele nem
se preocupa em negar) que especulou contra a coroa sueca.
Mas é igualmente um filósofo
de vasta cultura humanista. Talvez por isso, tornou-se um crítico do sistema -o capitalismo-
que o fez bilionário, dono de um
fundo (o Quantum) com o melhor desempenho no setor, na
média dos 29 anos em que atua.
"O fato de que a intervenção
governamental provou-se ineficiente não é razão para acreditar
que os mercados são perfeitos",
diz. É difícil encontrar alguém
mais capacitado a produzir tal
frase. O próprio Soros diz que
seu conhecimento sobre a "falibilidade" do mercado o ajudou a
ganhar muito dinheiro.
Nem por isso virou um "fundamentalista do mercado", como costuma chamar os que só
vêem virtudes no sistema.
Ao contrário, chega a considerar comunismo e capitalismo
nascidos da mesma raiz. "O laissez-faire (liberalismo absoluto)
baseia-se na mesma estrutura
mental do marxismo", diz.
Explica: ambos nasceram em
um momento em que havia certezas supostamente científicas
sobre o mundo, uma visão que
ele considera totalitária.
Pelo menos em parte, esse repúdio ao totalitarismo levou-o a
criar, em 1979, o Fundo "Open
Society" (Sociedade Aberta), assim como duas fundações para
atuar em países comunistas
(Hungria e União Soviética).
Foi a sua contribuição para
abrir os regimes comunistas.
Mas sua derrubada não o impediu de atrapalhar o sistema, supostamente capitalista, surgido
na Rússia. Em meados do ano
passado, pré-anunciou o colapso do país, ocorrido dias depois
Nem por isso deve se tomado
como profeta, até porque tem
feito previsões de cunho apocalíptico uma após a outra. Assim,
aumenta sua chance de acertar.
Após a crise mexicana de 1994,
gritou que os desdobramentos
poderiam "evoluir para uma situação tipo 1929" (ano de início
da mais grave crise financeira
até então conhecida). Na crise
asiática de 97, cantou: "A Ásia
tem potencial para destruir o sistema comercial mundial".
Nem uma nem outra previsão
se confirmaram até agora, mas
até o presidente dos EUA, Bill
Clinton, já disse que o mundo vive a sua mais grave crise financeira em 50 anos. Não é o apocalipse cantado por Soros, mas pode ser um pedaço andado.
Por isso, o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria
ter gravado a fogo a mensagem
que ouviu de Soros quando os
dois compartilharam uma sessão do encontro anual do Fórum, no ano passado.
"A tese de que o mercado tende a levar as coisas ao equilíbrio
pode se aplicar a bens e serviços
comuns, mas não funciona para
mercados financeiros, que são
inerentemente instáveis", disse.
De lá para cá, a instabilidade
foi o pão de cada dia da moeda
brasileira, até a sua derrubada.
É impossível saber se FHC decidiu ouvir a voz, que, de novo,
soou, anteontem, como a trombeta do apocalipse. Em entrevista coletiva, Soros avisou que o
Brasil tinha "muito pouco tempo para estabilizar" a situação.
Terá sido mera coincidência o
fato de que, 24 horas depois, o
governo brasileiro anuncie como presidente do Banco Central
um de seus homens?
Soros pedia, para estabilizar a
crise no Brasil, a construção de
um "muro de dinheiro" por parte da comunidade financeira.
É coincidência o fato de Armínio Fraga ser um homem de
prestígio tanto no FMI como na
Secretaria norte-americana do
Tesouro, para não falar de conhecimentos no setor privado?
O tempo dará as respostas às
perguntas, mas talvez elas nem
surgissem se um ônibus da pequena Davos passasse por cima
de Soros, na sexta-feira.
O megainvestidor saiu do Hotel Belvedere rumo ao Centro de
Congresso, onde se realizam as
sessões do encontro anual.
Como havia muita neve acumulada nas calçadas, caminhava
pelo leito da avenida Promenade. O ônibus vinha pelas suas
costas, e o motorista esperou
que ele e dois acompanhantes
fossem para a calçada. Não foram. O motorista perdeu a paciência, chegou bem perto e lascou um buzinaço.
Soros pulou para a calçada, a
salvo, e continuou sendo atração
no Fórum, por mais que este tenha a maior concentração de
personalidades por metro quadrado. Afinal, nenhuma delas é
tão demonizada quanto esse senhor de modos afáveis, rosto rosado e óculos de lentes claras, capaz de satanizar o que o tornou
bilionário, o capitalismo.
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