São Paulo, quarta-feira, 03 de abril de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Privatização impopular

PAULO RABELLO DE CASTRO

Mais de 700 mil detentores de contas do FGTS optaram por adquirir ações da Vale do Rio Doce no processo de venda de sobras leiloadas pelo BNDES no dia 15 de março. Houve rateio das propostas de compra por causa do excesso de procura em relação ao valor de R$ 1 bilhão do FGTS liberado pelo governo para os optantes. Cada candidato a comprar as ações da Vale vai ficar com apenas cerca da quarta parte do que se propunha a adquirir. Havia muitos compradores, portanto, e havia ações para venda, mas não havia liberação prévia de recursos do próprio FGTS na quantia necessária. Em razão disso, vai ser difícil explicar para quem aplicou até 50% dos seus depósitos acumulados no FGTS, que a sua proposta de compra das ações "micou".
A venda das ações, considerada um sucesso absoluto, rendeu R$ 4,4 bilhões aos cofres do governo. Na ótica do governo, premido como sempre pela necessidade de arrecadar, o resultado não poderia ter sido mais favorável, repartido -como foi- entre as colocações doméstica e internacional, esta última rendendo-lhe a entrada de recursos em moeda estrangeira.
Mais uma vez, entretanto, ficou para um plano secundário a ampliação da participação do grande público como detentor de ações e participante de uma fração do capital de origem estatal brasileiro. A percepção fleugmática do governo de que "essa ampliação da cota democratizada do capital se dá aos poucos" é a que alimenta a noção falsa de sucesso na última venda de Vale, conforme medida pela quantidade de proponentes à compra, embora acabassem ficando desatendidos por excesso de pedidos!
Não creio que essa seja uma medida verdadeira de sucesso no leilão. Mais uma vez, os maiores compradores das ações da grande mineradora brasileira foram os investidores externos, em detrimento da compra por brasileiros que manifestaram seu interesse. Do total vendido, mais de 50% dos investimentos vieram do exterior, enquanto os brasileirinhos chupavam o dedo na fila de compra por meio do seu FGTS.
Certamente isso não aconteceria nos Estados Unidos ou na Inglaterra. A noção de preferência nesses países, considerados democráticos e liberais, difere diametralmente da nossa lista de prioridades como país emergente e subordinado aos compromissos financeiros prementes. A venda de ações da Vale nunca teve como prioridade ser parte de uma "privatização popular". A cota dos trabalhadores, cedida nas vendas de sobras da Petrobras e da Vale, da carteira do BNDES e do governo, resulta de um trabalho de paciente reivindicação que remonta aos tempos iniciais da privatização, entre 1991 e 1992. A partir desse tempo, temos cansativamente tentado demonstrar o interesse em transformar o capital estatal em lastro para os passivos dos chamados "fundos sociais", o FGTS em particular. Uma década depois, e após US$ 100 bilhões em vendas, surgiu o instrumento do FMP (Fundo Mútuo da Privatização), por meio do qual foram vendidas frações da Petrobras e da Vale, mesmo assim sujeitas aos estreitos limites postos à disposição pelo governo.
Trata-se de uma espécie de privatização "sem graça", quase impopular, em que se vendem pequenas sobras do que já foi privatizado (Vale) ou frações mínimas do que não o será (Petrobras).
No entanto a demanda por ações existe. Em pouco mais de 15 dias, num processo de venda quase sem desconto nem qualquer propaganda educativa, milhares de trabalhadores de chão de fábrica aderiram ao uso alternativo do seu FGTS. Muito mais poderia ter sido alcançado, se um esforço programado e antecedente fosse acertado entre governo e lideranças sindicais. Possivelmente toda a oferta de Vale seria absorvida pelos trabalhadores. Contudo prevaleceu mais uma vez a consideração financeira de não se alterar a estrutura ultrapassada do FGTS, baseada na remuneração de 3% ao ano sem liberdade de aplicação livre pelo trabalhador. Prevaleceu mais uma vez, também, a preferência ao investidor externo.
O governo ficou com seu "sucesso" e o trabalhador, com sua frustração. Pagou mas não levou.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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