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OPINIÃO ECONÔMICA
O engodo da não-cumulatividade
MARCOS CINTRA
O escritor inglês C. C. Colton afirmou que "há enganos
tão bem elaborados que seria estupidez não ser enganado por eles".
A mitificação da superioridade da
não-cumulatividade sobre os tributos em cascata é um desses trágicos enganos.
A cumulatividade sempre esteve
presente no sistema tributário brasileiro, apesar das recentes providências para tornar o PIS-Cofins
não-cumulativo. Mesmo com a
forte campanha anticumulatividade encetada pelas principais lideranças empresariais e pelo governo, os tributos cumulativos continuam sendo preferidos aos impostos sobre valor agregado (IVAs) pela ampla maioria das empresas
brasileiras.
Essa aparente contradição entre
discurso e prática tem razão objetiva para existir. A campanha anticumulatividade foi encabeçada
por grupos empresariais ligados à
grande indústria, que, equivocadamente, acreditavam que a mudança no PIS-Cofins poderia lhe garantir certo alívio da carga tributária.
A hipótese básica dos grupos que
defenderam a não-cumulatividade
era que os prestadores de serviços
eram subtributados e que a não-cumulatividade do PIS-Cofins serviria para equalizar a arrecadação
de tributos entre todos os setores.
Tal hipótese é falsa. O setor de serviços é onerado com carga tributária global de 31% sobre seu valor
agregado, praticamente o mesmo
que na indústria (30%), como
comprovado em estudo da Fundação Getúlio Vargas (vide
www.marcoscintra.org/
destaques-anteriores/
default.asp?id=258).
Há alguns anos a bandeira da
não-cumulatividade foi transformada em dogma, dando-se início
a uma guerra santa contra tributos
cumulativos como o PIS, a Cofins e
a CPMF.
Contudo importantes tributos
cumulativos como o Simples, o Imposto de Renda cobrado sobre lucro presumido, o ISS e até mesmo
extravagâncias como o ICMS cumulativo (por exemplo, quando
cobrado sobre faturamento no setor de alimentação em São Paulo),
entre inúmeros outros casos, não
foram atacados pelos defensores da
nova verdade.
As contradições tanto no discurso quanto na prática da anticumulatividade chegam a ser hilariantes.
A elevação quase generalizada
da carga tributária, provocada pelo novo PIS/Cofins, fez a unanimidade a favor da não-cumulatividade evaporar. Tarde demais, a
adoção da medida propiciou ao
governo tributar as importações,
medida diga-se de passagem correta, mas que sofria oposição de setores importadores de matérias-primas.
Ademais, a leitura da lei 10.833/
03 deixa claro que a não-cumulatividade do PIS-Cofins implicará
maiores custos burocráticos na
apuração e na arrecadação do novo tributo. O método declaratório
da nova contribuição é complexo,
cheio de meandros e incertezas administrativas, o que vem suscitando inúmeros seminários, cursos e
encontros de esclarecimentos para
garantir a conformidade das empresas com a nova legislação.
A existência de exceções, de créditos presumidos e de imunidades
e isenções logo transformarão a
nova contribuição não-cumulativa
em foco de custos para as empresas
e de novas fontes de receita para os
advogados tributaristas e auditores fiscais.
Contudo o mais surrealista na lei
10 833/03 é a sua total incapacidade prática de colocar em uso o
princípio fundamental da não-cumulatividade dessa nova contribuição.
Cumulatividade existe não apenas no tocante a um tributo específico, quando o próprio tributo se
torna base de arrecadação dele
mesmo em etapas posteriores no
processo de produção. Ela também
pode ocorrer entre tributos diferentes, quando o valor arrecadado de
um tributo se torna base de cálculo
de outros. No caso do PIS-Cofins
não-cumulativo, surge um caso esdrúxulo, em que simultaneamente
o PIS-Cofins devido é base de cálculo para o ICMS e o ICMS devido
é base de cálculo do PIS-Cofins. A
cumulatividade entre tributos torna-se assim parte integrante do novo PIS-Cofins não-cumulativo.
Igualmente reveladora das contradições existentes no PIS-Cofins
não-cumulativo é a atitude do governo ante as reivindicações dos setores que se sentiram prejudicados.
Se, de fato, a não-cumulatividade
fosse benéfica ao conjunto da sociedade, seria lícito supor que, superada a questão da coordenação da
mudança, todos sairiam ganhando, direta ou indiretamente. Nesse
sentido, o conjunto dos setores produtivos deveria sentir melhorias
em seus custos de produção e em
suas respectivas cargas tributárias.
Não é o que se passa, no entanto.
Ainda durante o processo de negociação do novo PIS-Cofins vários setores reivindicaram -e foram atendidos- permanecer no
sistema cumulativo, em vez de migrar para o sistema que supostamente seria mais benéfico para
eles.
O que essas exceções nos mostram com meridiana clareza é que
a lógica empresarial da minimização dos custos indica a superioridade da cumulatividade sobre a
não-cumulatividade e que as alegadas vantagens em termos de eficiência e produtividade dos sistemas de tributação sobre valor
agregado não são endossadas por
amplos segmentos do setor produtivo nacional.
A preferência empresarial para
permanecer no PIS-Cofins cumulativo é tão evidente a ponto de estimular a adoção de projetos de
planejamento tributário sofisticados com a finalidade de evitar a
não-cumulatividade. Em reportagem no jornal "Valor" de 17 de fevereiro, a repórter Marta Watanabe descreve a manobra de alguns
grandes grupos empresariais que
aderiram ao Refis para a quitação
de débitos tributários de reduzida
significação com o intuito de se
qualificar para pagar IR e CSLL
pelo sistema de lucro presumido e,
por tabela, adquirir o privilégio de
permanecer no PIS-Cofins cumulativo.
Vencida a guerra santa contra a
cumulatividade, as empresas brasileiras e também os consumidores
percebem, atônitos, que foram vítimas de monumental engodo.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade
Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, foi deputado federal
(1999-2003). Atualmente é secretário
das Finanças de São Bernardo do Campo. É autor de "A verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
Internet: www.marcoscintra.org
E-mail - mcintra@marcoscintra.org
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