São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2001

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LUÍS NASSIF

O neoliberalismo dissecado

Em julho de 1994, o país havia conseguido afastar seus dois piores fantasmas: a crise externa e a crise fiscal. A abertura de 1990 vinha sendo conduzida gradativamente, ajudando as empresas a se preparar para a globalização.
De repente, tudo isso foi por água abaixo. Na mudança do Real, para conseguir garantia máxima de estabilidade, o câmbio foi valorizado em 15%, abriram-se comportas para importação indiscriminada. Em poucos meses superávits comerciais viraram fumaça e o déficit em conta corrente passou a ser coberto por capital especulativo, atrás das mais altas taxas de juros reais da história.
Esse movimento não resultou em aumento do investimento, provocou piora mês a mês nos fundamentos macroeconômicos, quebrou a economia externa e internamente, setor público e privado, desnacionalizou setores expressivos da economia, desviou o foco das atenções do governo de qualquer medida de cunho operacional.

Diagnóstico
O melhor diagnóstico que li sobre essa marcha da insensatez é um pequeno livro de bolso (144 páginas) de 1998, "A Escola do Rio, As Origens Ideológicas do Plano Real" , de André Araújo (editora Alfa Omega), sobre o Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro, especialmente as 60 primeiras páginas.
Não se trata de obra conspiratória, embora se possa sentir falta da crítica ao esgotamento do velho momento intervencionista e a não-menção ao projeto da Integração Competitiva, proposta pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), a partir dos estudos do economista Júlio Mourão, em 1985, pelo qual a abertura controlada da economia seria uma peça estratégica para instituir a competição, induzir as empresas brasileiras a buscar a inserção internacional, acordos de tecnologia etc., processo iniciado em 1990 e abortado em 1994.
Quanto ao jogo ideológico do mercado financeiro, o livro consegue uma síntese admirável. Começa por historiar as raízes do neoliberalismo, que surge com Hayek, tem seu momento alto no conservadorismo responsável de Margaret Thatcher e, depois, resulta na irresponsabilidade dos "reagnomics" -a política econômica de Ronald Reagan, que lega enorme dívida pública ao país-e na apropriação ideológica do modelo pela escola de Chicago.
Simultaneamente, ocorre uma mudança no modelo econômico americano. O país desiste de competir em produtos tradicionais, passando a se concentrar em produtos de alta tecnologia, especialmente na área de serviços financeiros. Araújo vê a teoria econômica apenas como legitimadora e facilitadora de processos de hegemonia econômica, e não como indutora desse. Primeiro o modelo ganha forma. A teoria vem depois, operando como gazua ideológica, facilitando a expansão do novo poder hegemônico.

Exigências do capital
A expansão do capital financeiro exige estabilidade das moedas, livre trânsito nas economias nacionais e oportunidades para investimento. Esse processo pressupõe combate sem quartel à inflação, crença na oferta infinita de recursos internacionais (importante para induzir governos nacionais a endividamentos temerários), abolição de qualquer forma de controle sobre o capital, todo o esforço na obtenção de superávit fiscal (para garantir o pagamento da dívida), privatização ampla e irrestrita (criando oportunidades de negócios) e fim do Estado social.
Algumas dessas posições são defensáveis em si. O que a ideologia de mercado faz, no entanto, é concentrar toda a ênfase apenas nos aspectos que interessam ao capital financeiro. Essa ideologia não se propaga pela União Européia, que a compara a um livre cambismo anacrônico com roupagem nova. Mas encontra eco amplo nos países em desenvolvimento, graças aos economistas locais.
Sua cooptação se dá por meio das bolsas de pós-graduação para universidades estrangeiras, para uma formação calcada exclusivamente nos modelos macroeconômicos, sem conhecimento do mundo real, dos processos de desenvolvimento, dos fatores sociais e políticos essenciais para a construção de uma nação. Além disso, é no mercado financeiro que se abrem as melhores oportunidades profissionais.
Mas o que teria levado a essa unanimidade extraordinariamente medíocre em torno de sofismas é o chamado "efeito-demonstração" -de o grupo se apegar a determinadas idéias, por ser de bom-tom, significar sinal de modernidade, de internacionalismo.
Pode parecer interpretação primária do autor, mas não é. Foi justamente isso que sedimentou a notável ausência de espírito crítico do período.


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