São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Criatividade para financiar

LUCIANO COUTINHO

Parece-me carente de imaginação o debate sobre a política macroeconômica brasileira. Discute-se ardorosamente a respeito da boa ou má calibragem do regime de metas de inflação. Ao fixar metas incredivelmente apertadas para 2004 e para 2005, o Copom exacerbou o debate e quase saiu chamuscado, pois teve de recuar, embora justificadamente, dada a superveniência de choques de oferta no início deste ano (commodities) e no terceiro trimestre (petróleo). Se as metas fossem mais realistas e factíveis, o patamar de juros poderia ser mais baixo, com menor ônus fiscal.
A deficiência desse debate reside na sua miopia. Um olhar em perspectiva revela que o desafio da consolidação da estabilidade de preços e da confiança empresarial a médio e a longo prazos depende não apenas do controle do ritmo de crescimento (demanda agregada) mas, principalmente, da expansão dos investimentos (oferta). Com efeito, a economia brasileira ainda desfruta de níveis relativamente folgados de ociosidade industrial (na grande maioria dos setores de bens de consumo duráveis e não-duráveis). É provável que, "coeteris paribus", mantido o crescimento do PIB a 4,5% ao ano, dentro de um prazo de mais 12 a 18 meses comecem a se manifestar tensões inflacionárias derivadas da escassez de bens de consumo. No momento, os focos de estrangulamento de oferta são limitados, embora importantes, pois compreendem insumos intermediários relevantes na matriz de relações interindustriais (o aço é o caso mais evidente e o mais incômodo, pois tem sido, recentemente, um fator agressivo de inflação de custos).
Em suma, para assegurar a estabilidade e a convergência das expectativas de inflação, sem reprimir o ritmo de crescimento, é urgente e imprescindível deslanchar logo uma onda ponderável de investimentos privados para criação de capacidade produtiva, especialmente nos setores intensivos em capital que já ostentam índices altos de utilização da capacidade instalada (por exemplo, siderurgia, papel, borracha, metais não-ferrosos).
A expansão da oferta de infra-estruturas é igualmente crítica, notadamente nas áreas de transportes, portos e energia. O desafio é o modo de alavancar os escassos recursos orçamentários para efetuar esses investimentos sem comprometer as metas fiscais. Considerada a urgência, não se deveria aguardar a morosa aprovação e posterior regulamentação da PPP (Parceria Público-Privada). Com efeito, a PPP precisará ser discutida e negociada no Senado em termos compatíveis com as leis de Responsabilidade Fiscal, de Permissões, de Concessões e de Licitações.
Há uma alternativa consistente com o arcabouço de leis vigentes que deveria ser imediatamente explorada: trata-se da técnica do "project finance". Essa modalidade de financiamento ganhou corpo após os anos 70 com a sua bem-sucedida aplicação à exploração dos campos de petróleo no mar do Norte. Nos anos 80 e 90, sua utilização foi estendida a projetos de energia, transportes e a grandes projetos de exploração mineral em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
No caso brasileiro, algumas experiências foram bem-sucedidas (por exemplo, projetos de exploração de petróleo, como o Campo de Marlim, a Linha Amarela e a Hidrelétrica de Manso). É indispensável criar e reforçar garantias e reduzir riscos para que essa técnica de financiamento possa ser rapidamente utilizada sob os atuais regimes de concessão e licitação. Como o "project finance" se apóia primordialmente no fluxo de caixa futuro dos projetos, implica freqüentemente alavancagem elevada e abrange prazos longos de maturação e de amortização, é fundamental equacionar os seguintes aspectos: a) fixação de limites e da forma de participação orçamentária do setor público; b) desenvolvimento de cobertura aos riscos de performance e de neutralização dos riscos políticos; c) estruturação de condições viabilizadoras da participação de investidores institucionais (fundos de pensão) e de bancos privados; d) consolidação institucional dos regimes de regulação das concessões em algumas áreas (saneamento, especialmente).
Uma conjugação coordenada de esforços pode viabilizar em prazo curto o "project finance" como solução para muitos projetos infra-estruturais. Desde logo, uma estreita cooperação entre o Ministério do Planejamento, a Secretaria do Tesouro e o BNDES poderia solucionar o problema das garantias na fase de maior risco -a de construção/execução dos projetos. Completadas as obras, os organismos multilaterais poderiam ser chamados a auxiliar na neutralização dos riscos políticos e regulatórios que poderiam afetar o desempenho de longo prazo. Reformas legais poderão, mais adiante, aumentar o conforto para uma participação mais ativa dos investidores institucionais e do sistema bancário privado. O desafio está posto ao governo e ao setor privado: por favor, mexam-se!


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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