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ARTIGO
Ultraliberalismo epidêmico
FRANCISCO FONSECA
O consenso quanto aos valores e
políticas liberais, em voga nas últimas duas décadas em escala planetária, surpreende a todos que
procuram compreender o século
20, dado o forte antiliberalismo
presente nas mais diversas sociedades até meados dos anos 70.
A deflagração de duas guerras
mundiais, o surgimento do socialismo como alternativa real ao capitalismo, a ascensão do totalitarismo nazi-fascista e a destruição
econômica e social instauradas
com a crise de 1929 colocaram em
risco, de forma inédita, o modo de
produção capitalista. E, com ela, a
sua justificação ideológica: o liberalismo.
As soluções a essas graves ameaças foram diversas e ocorreram
em vários âmbitos. A vitória político-militar dos Aliados, na Segunda Guerra, representou também a vitória contra o antiliberalismo radical fascista, e o socialismo, igualmente antiliberal, fora
isolado com o advento da Guerra
Fria.
Na arena econômica, contudo,
um outro tipo de antiliberalismo,
representado pela revolucionária
economia política formulada por
Keynes, tornou-se responsável
por um novo e inesperado surto
prolongado de crescimento econômico.
O keynesianismo representou a
antítese das clássicas proposições
liberais, notadamente o "laissez-faire", por meio de um vigoroso programa estatal de regulamentações e investimentos públicos e
da criação de um "Welfare State"
redistribuidor das riquezas produzidas. Isso fez com que a preocupação com o estabelecimento do
pleno emprego dos fatores produtivos e com a justiça social entrasse para a agenda pública.
Consequentemente, o Estado legitimou-se, mesmo nas sociedades periféricas, como o grande
agente da reconstrução (já antes
da Segunda Guerra), do desenvolvimento e da equidade social. E a
social-democracia, personificada
em movimentos diversos e com
maior ou menor grau de democracia, foi o instrumento viabilizador
das reformas no capitalismo, pactuando com os trabalhadores sua
participação no sistema.
Aos apologistas das virtudes intrínsecas do livre mercado e do individualismo restou apenas o caminho da oposição; foram estigmatizados como anacrônicos e
culpados pelos erros do século. O
antiliberalismo tornou-se, portanto, endêmico, tendo em vista o
consenso quanto aos valores e
práticas coletivistas.
A virada liberal, contudo, tardou, mas não perdeu por esperar.
Seus ideólogos souberam aproveitar os flancos abertos pelas fragilidades dos acordos estabelecidos
em Bretton Woods, pela desaceleração econômica proveniente dos
choques do petróleo, pelo aumento da inflação e pelos impactos negativos para a força de trabalho da
reestruturação produtiva, resultante da terceira revolução industrial, para fulminar as velhas estruturas do keynesianismo social
democrata.
Uniram-se em torno de uma nova direita, possuidora de enorme
capacidade de espraiar-se ideologicamente pelo mundo, capitaneada por figuras como Hayek e
Milton Friedman. Inverteram os
temas da agenda pública e influenciam governos de todo o mundo
em torno da ampla e polissêmica
bandeira da prevalência do privado sobre o coletivo.
Procuraram, no limite, reprivatizar as questões sociais. Tal ultraliberalismo das últimas duas décadas tornou-se, portanto, epidêmico, tais os efeitos deletérios que
vem produzindo.
O desfecho liberal do século faz
com que, em todos os lugares, a
sociabilidade na esfera pública deteriore-se violentamente, destruindo o que fora resgatado a duras penas pelo antiliberalismo coletivista, social-democrata. A
"loucura das Bolsas" apresenta-se
hoje como sua melhor expressão.
Quem sabe um novo antiliberalismo surgirá para salvar o ultraliberalismo de si mesmo e, com ele,
todos nós.
Francisco C. P. Fonseca, 33, é professor de
ciência política e pesquisador do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (Cedec).
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