São Paulo, quarta, 4 de fevereiro de 1998

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ARTIGO
Ultraliberalismo epidêmico

FRANCISCO FONSECA
O consenso quanto aos valores e políticas liberais, em voga nas últimas duas décadas em escala planetária, surpreende a todos que procuram compreender o século 20, dado o forte antiliberalismo presente nas mais diversas sociedades até meados dos anos 70.
A deflagração de duas guerras mundiais, o surgimento do socialismo como alternativa real ao capitalismo, a ascensão do totalitarismo nazi-fascista e a destruição econômica e social instauradas com a crise de 1929 colocaram em risco, de forma inédita, o modo de produção capitalista. E, com ela, a sua justificação ideológica: o liberalismo.
As soluções a essas graves ameaças foram diversas e ocorreram em vários âmbitos. A vitória político-militar dos Aliados, na Segunda Guerra, representou também a vitória contra o antiliberalismo radical fascista, e o socialismo, igualmente antiliberal, fora isolado com o advento da Guerra Fria.
Na arena econômica, contudo, um outro tipo de antiliberalismo, representado pela revolucionária economia política formulada por Keynes, tornou-se responsável por um novo e inesperado surto prolongado de crescimento econômico.
O keynesianismo representou a antítese das clássicas proposições liberais, notadamente o "laissez-faire", por meio de um vigoroso programa estatal de regulamentações e investimentos públicos e da criação de um "Welfare State" redistribuidor das riquezas produzidas. Isso fez com que a preocupação com o estabelecimento do pleno emprego dos fatores produtivos e com a justiça social entrasse para a agenda pública.
Consequentemente, o Estado legitimou-se, mesmo nas sociedades periféricas, como o grande agente da reconstrução (já antes da Segunda Guerra), do desenvolvimento e da equidade social. E a social-democracia, personificada em movimentos diversos e com maior ou menor grau de democracia, foi o instrumento viabilizador das reformas no capitalismo, pactuando com os trabalhadores sua participação no sistema.
Aos apologistas das virtudes intrínsecas do livre mercado e do individualismo restou apenas o caminho da oposição; foram estigmatizados como anacrônicos e culpados pelos erros do século. O antiliberalismo tornou-se, portanto, endêmico, tendo em vista o consenso quanto aos valores e práticas coletivistas.
A virada liberal, contudo, tardou, mas não perdeu por esperar. Seus ideólogos souberam aproveitar os flancos abertos pelas fragilidades dos acordos estabelecidos em Bretton Woods, pela desaceleração econômica proveniente dos choques do petróleo, pelo aumento da inflação e pelos impactos negativos para a força de trabalho da reestruturação produtiva, resultante da terceira revolução industrial, para fulminar as velhas estruturas do keynesianismo social democrata.
Uniram-se em torno de uma nova direita, possuidora de enorme capacidade de espraiar-se ideologicamente pelo mundo, capitaneada por figuras como Hayek e Milton Friedman. Inverteram os temas da agenda pública e influenciam governos de todo o mundo em torno da ampla e polissêmica bandeira da prevalência do privado sobre o coletivo.
Procuraram, no limite, reprivatizar as questões sociais. Tal ultraliberalismo das últimas duas décadas tornou-se, portanto, epidêmico, tais os efeitos deletérios que vem produzindo.
O desfecho liberal do século faz com que, em todos os lugares, a sociabilidade na esfera pública deteriore-se violentamente, destruindo o que fora resgatado a duras penas pelo antiliberalismo coletivista, social-democrata. A "loucura das Bolsas" apresenta-se hoje como sua melhor expressão. Quem sabe um novo antiliberalismo surgirá para salvar o ultraliberalismo de si mesmo e, com ele, todos nós.


Francisco C. P. Fonseca, 33, é professor de ciência política e pesquisador do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (Cedec).



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