São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2004

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ARGENTINA

Depois da privatização radical sob Menem, governo reestatiza empresas e pressiona concessionárias de serviços

Estatização ganha fôlego com Kirchner

CLÁUDIA DIANNI
DE BUENOS AIRES

O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, anunciou que o país vai retomar a prestação de serviços de trens de longa distância da rede ferroviária nacional. Na última terça, foi publicada uma normativa no "Diário Oficial" que revoga um decreto do ex-presidente Carlos Menem (1989-99) que suprimiu o serviço em 1992.
Depois de ter passado por um dos mais radicais processos de privatização, a Argentina tenta dar certa robustez ao Estado. Desde que assumiu, em maio do ano passado, Kirchner reestatizou os Correios, criou uma empresa aérea estatal, anunciou uma empresa de petróleo, cancelou a concessão de uma linha de trem e recentemente enviou ao Congresso um projeto de lei que amplia o controle do Estado sobre as concessionárias de serviços públicos.
No caso dos trens que ligam as Províncias, o governo pretende reabilitar, a partir do ano que vem, 7.000 dos 33.000 km da rede nacional. O problema será o estado de deterioração das redes. Alguns trens que já estão circulando alcançam só 30 km/h.
A reinstalação dos trens é uma promessa de campanha de Kirchner. Com o fim dos serviços públicos de trem, vários municípios ficaram isolados.
O anúncio de intervenção estatal mais audacioso feito pelo governo até agora foi o da criação da Enarsa (Energia Argentina Sociedade Anônima). O governo quer que a Enarsa seja "uma empresa testemunha", ou seja, uma estatal que, ainda que não opere diretamente, dite preços e controle os valores praticados no mercado.
É o mesmo objetivo das Linhas Aéreas Federais S.A. (Lafsa). Em 2003, a crise da Lapa e da Dinar, empresas aéreas regionais, paralisou os aeroportos argentinos. O governo criou a Lafsa e passou a operar esses vôos.
Os Correios foram umas das últimas privatizações de Menem. O consórcio Correio Argentino S.A. (Casa) havia ganhado a concessão dos serviços por 30 anos, mas a má qualidade dos serviços prestados levou o governo a retomar a operação dos serviços.
Em junho, o Estado rescindiu o contrato de concessão de uma linha de trem na Grande Buenos Aires, operada pela empresa San Martin, também por causa da má qualidade dos serviços oferecidos.

Tendência estatizante
"Não há dúvida de que este governo tem tendência estatizante, o que é um retrocesso, porque a Argentina teve quatro décadas de Estado empresário que terminaram em hiperinflação. Dos casos de intervenção, o único que se justifica é o dos trens interurbanos, cujos serviços são uma vergonha. Mas há um claro interesse do governo no petróleo, nos correios e nas linhas aéreas. Preferem estatizar a dar aumento de tarifa", diz José Luis Espert, consultor e crítico do governo.
Na opinião de Martin Fchorn, especialista em privatizações da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso), os negócios que interessavam ao setor privado nos anos 90 não são mais tão rentáveis como antes, quando o peso valia o mesmo que o dólar, entre 1990 e 2001. "Perdeu-se o interesse em investir e prestar um bom serviço. O Estado não está readquirindo as empresas, mas cancelando as concessões por maus serviços prestados."
A renegociação dos contratos com as empresas privatizadas, uma exigência do FMI para assinar o ultimo acordo com a Argentina, em setembro de 2003, até agora não ocorreu. A maior parte das tarifas de serviços públicos, com exceção de gás e eletricidade, que sofrem pequenos reajustes por causa da crise de energia, está congelada desde janeiro de 2002.
O projeto de lei apresentando ao Congresso no final do mês passado, que aumenta o controle do Estado sobre as concessionárias de serviços públicos, proíbe reajustes automáticos e o corte dos serviços não-pagos por famílias registradas como indigentes.
Os fundos de pensão também já foram alvo da tendência estatizante. A Argentina substituiu parcialmente o sistema público de repartição pelo sistema privado de capitalização individual.
Para financiar os custos de transição entre os dois sistemas, o governo Menem forçou os fundos de pensão a adquirir títulos do Tesouro. Agora, esses fundos possuem cerca de 20% dos títulos da dívida em moratória.
Segundo a Folha apurou, o governo chegou a ameaçar reestatizar o sistema caso os fundos não aceitem a proposta do governo de pagamento da dívida.

Fim de uma era
A crise dos anos 80 trouxe o fim de uma era de Estado interventor, caracterizado por grandes investimentos estatais e desequilíbrios macroeconômicos na Argentina e na maioria da região.
Nos anos 90, a Argentina passou por um processo de profundas mudanças estruturais. Uma das primeiras leis que o ex-presidente Menem enviou ao Congresso, dias depois de assumir, em julho de 1989, foi o projeto de reforma do Estado, que incluía, além da privatização radical, a liberalização comercial e financeira.
Em menos de seis anos o controle da maioria das empresas estatais estava nas mãos do setor privado. Com exceção das empresas de gás e de eletricidade, as privatizações foram feitas por decreto, não por lei. Foram vendidas mais de 60 empresas.

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