São Paulo, segunda-feira, 04 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA
Constantinopla

JOÃO SAYAD

Estamos preocupados com a crise da Argentina, aqui do lado, com o crescimento menor dos Estados Unidos, 9.000 km ao norte, com o euro e o preço do petróleo.
Na semana passada adicionamos a Turquia às nossas preocupações, país de que não ouvíamos falar desde a queda de Constantinopla.
A instabilidade cambial dos mais distantes países atrapalha a recuperação da economia brasileira. A taxa cambial pode subir, os investimentos diretos do estrangeiro podem se reduzir, podemos ter dificuldade para financiar a enorme carência de dólares do país. A suave retomada do crescimento pode ser interrompida.
Em compensação, ninguém se preocupa conosco e não preocupamos ninguém. É a situação da economia brasileira às vésperas do melhor Natal do Plano Real.
Será que poderíamos nos isolar do mundo em termos financeiros e evitar as mazelas da globalização?
Cada geração é escrava de seu tempo.
Revolucionários escrevem manifestos, pegam em armas, são oradores inflamados contra o tempo em que vivem. A autonomia e a liberdade são apenas aparentes -vivem, como todo o mundo, em razão das idéias do seu tempo, ainda que contra elas.
O artista genial e o filósofo descrevem e organizam os conceitos do tempo que estão vivendo. Sincronizados serão felizes e reconhecidos como Mozart, Einstein ou Noel Rosa. Muito à frente do próprio tempo, serão perseguidos como visionários ou pobres coitados, reconhecidos postumamente.
Para analisar política e governantes, desde presidentes até prefeitos e administradores regionais, precisamos distinguir as escolhas que podem fazer no labirinto dos preconceitos e idéias erradas de cada tempo.
Grande estadista é apenas aquele que encontra as brechas ou avança obliquamente contra os tabus da época, para alcançar o poder.
Schindler conseguiu a confiança dos nazistas para facilitar a fuga de milhares de judeus. Foi um gênio da ação.
Juscelino foi grande presidente, não porque tenha feito a economia brasileira crescer 50 anos em 5. Toda a América Latina cresceu rapidamente nos anos 50 e 60.
JK foi um grande presidente porque fez o Plano de Metas com entusiasmo, foi hábil na criação e organização dos Grupos Executivos Industriais e generoso com os rebeldes de Jacareacanga e Aragarças. Não são poucos méritos. O resto é resultado do tempo em que viveu.
O Brasil não poderia ficar fora do circuito da globalização financeira. O único caminho para acabar com a inflação era fixar a taxa cambial aproveitando o excesso de liquidez internacional. Todos os países da América Latina fizeram a mesma coisa.
Entretanto não precisávamos ter sobrevalorizado o câmbio ou ter reduzido as tarifas de importação tão rapidamente. Nada impediu ou impede que tenhamos política industrial e de apoio às exportações que aumentasse o saldo comercial e reduzisse menos a oferta de empregos.
Entretanto, ainda na semana passada, o governo anunciou que quer reduzir ainda mais as tarifas de importação.
(Para quê? Para diminuir as receitas tributárias, que podem ser usadas para pagar o salário mínimo ou aumentar o déficit comercial que já é de US$ 400 milhões?)
Para evitar tantos enganos e tanto sofrimento em termos de desemprego, bastaria uma gotinha de dúvida sobre os mitos do nosso tempo.
Com um pouco de sabedoria, os últimos seis anos da economia brasileira teriam sido excepcionais e nossas preocupações, hoje, se limitariam à Argentina. A Turquia continuaria a ser apenas um país cuja capital não é mais Constantinopla.


João Sayad, 55, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


Texto Anterior: Análise: Salário mínimo e popularidade
Próximo Texto: Desestatização: Moeda podre tira US$ 11 bi das privatizações
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.