São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Alca, "uma odalisca de cabaré barato"

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Nesta semana , foram retomadas as negociações da Alca em Puebla, no México. O objetivo do Brasil é consolidar a vitória alcançada na reunião ministerial de Miami, em novembro do ano passado. Na ocasião, os 34 países participantes concordaram com um modelo de negociação mais flexível e menos ambicioso, compatível com as posições que o Brasil passou a defender desde o início do governo Lula.
Esse novo modelo, apelidado pela imprensa de Alca "light" ou Alca "à la carte", prevê dois níveis de negociação. O primeiro nível consistiria em "um conjunto comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis a todos os países", segundo a declaração ministerial de Miami. Num segundo nível, os países que assim decidissem poderiam, no âmbito da Alca, definir "obrigações e benefícios adicionais", possivelmente por meio de negociações plurilaterais.
A declaração de Miami foi redigida para acomodar a proposta brasileira de retirar ou tornar facultativos, no todo ou em parte, temas problemáticos para o Brasil, os EUA e outros países. Agricultura e antidumping, no caso dos EUA. Investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual e serviços, no caso do Brasil. Brasília reconheceria que as questões problemáticas para Washington devem ser abordadas basicamente na OMC. Em compensação, Washington aceitaria que os tópicos problemáticos para Brasília também sejam remetidos à OMC, recebendo tratamento limitado ou não obrigatório na Alca.
Os EUA e outros países nunca ficaram totalmente satisfeitos com a Alca "light". Os países que preferem a Alca "heavy" já têm acordos abrangentes de livre comércio com os EUA (Canadá, México e Chile) ou estão ansiosos para negociar algo do gênero (Colômbia, Peru, Equador e vários outros).
Como se poderia prever, os EUA e esses outros países procuram agora em Puebla interpretar à sua maneira o novo formato da negociação, aproveitando o caráter vago e genérico do que foi decidido em Miami. Se a sua interpretação prevalecer, a vitória brasileira em Miami terá sido uma vitória de Pirro.
Uma forma de tornar a Alca "light" mais calórica é ampliar ao máximo o "conjunto comum de direitos e obrigações", reintroduzindo temas que o Brasil pretende tratar de acordo com as regras da OMC. Outra é incluir exigências cruzadas entre as diferentes áreas da negociação, estabelecendo que não assumir compromissos OMC-plus em investimentos ou propriedade intelectual, por exemplo, implicaria ter menos vantagens em termos de acesso a mercados.
A julgar pelas notícias que chegam de Puebla, os Estados Unidos também estão recuando em relação à sua proposta anterior de eliminar completamente as tarifas de importação. Agora pretendem eliminá-las para "substancialmente todo o comércio". Para o Brasil, o risco é que os setores excluídos da liberalização sejam justamente aqueles em que apresentamos vantagens competitivas (açúcar, algodão, suco de laranja, etanol, calçados e têxteis, entre outros produtos) e que estão sujeitos a pesadas barreiras nos Estados Unidos.
Informa-se que Washington deseja também incluir uma "salvaguarda especial" para produtos agrícolas com a finalidade de compensar oscilações cambiais (uma grande depreciação do real, por exemplo) e outros fatores que afetem o comércio internacional entre os países participantes.
O tempo dirá. Mas a reunião de Puebla parece estar confirmando algo que muitos no Brasil não vêem ou fingem não ver: a dificuldade imensa, provavelmente intransponível, de chegar a um resultado aceitável para o Brasil.
Teoricamente, a Alca proporcionaria acesso privilegiado ao grande mercado dos EUA. Na prática, Washington oferece pouco e pede muito. Boa parte dos demais países negocia em sintonia com os EUA. O terreno da Alca não é favorável para o Brasil. O desequilíbrio de poder é grande e são limitadas as nossas possibilidades de estabelecer alianças.
Quem tem razão é o co-presidente brasileiro da negociação, o embaixador Adhemar Bahadian. Valendo-se de uma imagem que ele considera "pouco ortodoxa", mas que nem por isso é menos certeira, Bahadian comparou a Alca a uma odalisca de cabaré barato: "À luz tênue da noite, parece uma deusa. Quando amanhece, percebe-se que não é nada daquilo. Às vezes, nem mulher é".


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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