São Paulo, sábado, 05 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GESNER OLIVEIRA

Fracasso e futuro de Doha

Uma nova Doha terá de ser lançada em novas bases para ser viável, terá de ser mais ampla e menos estatal

DOHA MORREU . A chamada Rodada do Desenvolvimento da OMC (Organização Mundial do Comércio), iniciada em 2001, fracassou. A suspensão das negociações, anunciada pelo diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, marcou o fim de sucessivas tentativas de acordo. Mas em comércio internacional a morte não é definitiva. Uma rodada pode ressuscitar, como ocorreu com a Rodada Uruguai em 1993-94. Mas, para ser viável, Doha terá de ser relançada em novas bases. O fracasso de Doha não representa o fim do multilateralismo ou uma inevitável retração do comércio mundial. Seus eventuais resultados sobre a economia internacional são de longo prazo. As projeções para os próximos dois anos estão dadas pelo desempenho recente das principais economias do mundo. Persiste o efeito do forte crescimento da China de forma a garantir taxas razoáveis de crescimento do comércio em 2007/08. As regras da OMC não deixarão de valer simplesmente porque não se chegou a um acordo. Pelo contrário, o mecanismo de solução de controvérsias pode se tornar ainda mais ativo. O insucesso de Doha tem várias explicações. Uma delas é simples e de natureza operacional. O formato de rodadas amplas de negociação com um número crescente de países e de assuntos torna cada vez mais difícil chegar a um consenso. Apenas 23 países participaram da primeira rodada, em 1947; esse número chegou a 26 na Rodada Dillon, em 1960-61; a 62 na Rodada Kennedy, em 1964-67; a 102 na Rodada Tóquio, em 1973-79; a 123 na Rodada Uruguai, em 1986-94, e a 149 em Doha. O fracasso de Doha enseja a proliferação de acordos bilaterais. É verdade que esses últimos são menos eficientes do que um acordo multilateral e são menos vantajosos para países com menor poder de barganha. Mas esse processo já vinha ocorrendo, promovido justamente pelos principais jogadores de Doha, EUA e União Européia. É intuitivo que a probabilidade de um acordo multilateral se reduza à medida que aumenta o número de jogadores e seja maior o equilíbrio entre eles. O formato das rodadas pareceu adequado para o mundo liderado pelos Estados Unidos e caracterizado por elevadas tarifas de importação e comércio de mercadorias tradicionais. Tal arranjo não parece mais conveniente para uma economia mundial multipolar caracterizada pelos fluxos crescentes de serviços, comércio eletrônico, comércio intrafirmas e barreiras não-tarifárias. Cinco movimentos deverão ocorrer para imaginar uma negociação multilateral bem-sucedida nas próximas décadas. Em primeiro lugar, a OMC deverá assumir um papel de organização multilateral propriamente dita com funcionamento regular, especialmente para a resolução de conflitos. Tal fórum deverá ser complementado pela mediação e pela arbitragem internacionais, que já vêm adquirindo papel de crescente importância. Em segundo lugar, a negociação terá de deixar de ser episódica. Em vez de "rodadas", deverá existir calendário habitual de negociação. Em terceiro lugar, será necessário incorporar de forma mais orgânica as organizações não-governamentais, muitas delas de caráter transnacional. A formação do consenso não pode mais ficar restrita às burocracias estatais. O convencimento político das grandes questões de propriedade intelectual e da biotecnologia passa por um debate muito mais amplo e pela mobilização da opinião pública. Em quarto lugar, será impossível liberalizar o comércio sem esforço simultâneo de harmonização das legislações nacionais. Tal processo, por sua vez, deverá ocorrer de forma voluntária, mas crescentemente articulada aos trabalhos da OMC. Por fim, e mais importante, a formação de coalizões pró-comércio vencedoras só ocorrerá com a "popularização do comércio" mediante o maior acesso das empresas médias e pequenas e a maior mobilidade da força de trabalho pelas várias regiões do mundo. Doha ou uma rodada ampla com outro nome deverá ocorrer nos próximos anos. Mas essa nova Doha terá de ser lançada (ou relançada) em novas bases para ser viável. Terá de ser mais ampla e menos estatal. O Brasil tem um longo dever de casa a fazer para esse novo, e ainda mais complexo, jogo do comércio mundial.


GESNER OLIVEIRA , 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade. Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Após queda industrial, alta do PIB já é revista para baixo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.