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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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EXPORTAÇÃO DE TALENTOS

Embaixada do Brasil estima que há de 600 a 800 profissionais na indústria de calçados do Cantão

Brasileiros vão à China em busca de emprego

Arquivo Pessoal
Clara Bohrer, mulher de Celso Luiz Kiefer, e seu filho, Arno Bohrer Kiefer, na muralha da China


CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Victor Rausch tinha 36 anos em 1991 quando viu um anúncio em inglês no jornal de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. A empresa chinesa Hai Fong buscava um técnico em calçados disposto a se transferir ao outro lado do mundo para ensinar operários a fabricarem sapatos de couro. Desempregado havia oito meses, Rausch aceitou a oferta e em menos de quatro semanas já estava na Província de Cantão, a 18 mil quilômetros e 11 horas a mais de fuso horário de Novo Hamburgo.
Desde o início dos anos 90, centenas de brasileiros da tradicional região calçadista do Vale dos Sinos (RS) seguiram o mesmo caminho de Rausch e se instalaram em Dongguan e outras cidades do Cantão, no sul da China, onde se concentram as gigantescas fábricas de sapatos do país.
Com o know-how e a experiências desses brasileiros, a China entrou em um terreno que havia sido dominado pelo Brasil nas décadas de 70 e 80: a fabricação e a exportação de sapatos de couro de preço médio ou popular.
No início dos anos 90, a indústria nacional já estava em crise, abalada pelos planos econômicos do período e a perda de competitividade para os asiáticos. Com a queda das oportunidades de emprego, muitos gaúchos preferiram tentar a vida em um país estranho, com língua e hábitos culturais que desconheciam.

Churrascarias
A embaixada brasileira em Pequim estima que há de 600 a 800 brasileiros vivendo atualmente no Cantão, com maior concentração em Dongguan. A presença dos gaúchos é revelada pela proliferação de churrascarias. Só em Dongguan há pelo menos três.
Apesar de terem jornadas bem mais longas que no Brasil, os gaúchos têm uma vida profissional que está longe do estereótipo da exploração do trabalho pelo qual a China se notabilizou. São bem remunerados, moram em apartamentos alugados pela empresa, contam com um intérprete para o trabalho e recebem ao menos duas passagens ao ano para visitarem o Brasil por 15 dias.
"A China paga muito bem os técnicos em calçados para tirar deles toda a tecnologia que puder e se transformar em uma potência nesse setor", diz Etevaldo Zilli, 56, que se mudou com a mulher e duas filhas para Dongguan em 1996, contratado para montar um curtume. Missão cumprida, voltaram depois de um ano e meio. Só a filha mais velha, Betina, ficou na cidade de Lishui, onde trabalhou por dois anos em uma companhia de exportação de calçado.
Mas nem todos voltam. Mauro Willrich, 49, se casou com a chinesa Liang Min e espera o nascimento de Fernando Liang Min para dezembro. Ele foi à China pela primeira vez em 1998, trabalhar na fabricante de calçados Paramont, que emprega cerca de 150 brasileiros. Recém-separado, Willrich estava desempregado havia meses quando viu um anúncio no jornal de Novo Hamburgo. Foi contratado com salário de US$ 7.000, apartamento, comida, US$ 250 para telefone e duas passagens por ano para o Brasil.
Acabou demitido seis meses depois e voltou ao Rio Grande do Sul decidido a retornar à China. Naquela época, já havia se apaixonado por Liang Min, que conheceu em um imenso supermercado Wall-Mart. "Eu cheguei ao supermercado e comecei a procurar uma caixa que falasse inglês. Lá no fim havia uma chinesa linda, que respondeu sim", contou Willrich à Folha por telefone.
Depois de idas e vindas entre os dois países, Willrich voltou a se instalar em Dongguan há três anos, contratado pela norte-americana Brown Shoe. Para ele, a China é o "Primeiro Mundo".

Amigos e chimarrão
Daniel Veit é outro que constituiu família na China: casou-se e já tem uma filha. Veit recebeu convite para trabalhar no país em 1994. Estava empregado, mas "desapontado" com a situação da indústria de calçados no Brasil. "Disse sim na mesma hora", relatou Veit à Folha por e-mail.
Hoje ele mora em Guangzhou, capital da Província do Cantão. Como muitos conterrâneos, vive em um condomínio com piscina, quadra de tênis e área de lazer para crianças. De vez em quando, se reúne com outros gaúchos em torno de churrasco e chimarrão.
Divorciado e pai de dois filhos, Elio Silva, 36, foi contratado por meio de uma agência de empregos de Novo Hamburgo, a pedido da Paramont, que fabrica os sapatos da marca norte-americana Nine West. Mudou-se em dezembro de 1999 e, alguns meses depois, já estava em outra empresa, a Trade Wind, onde trabalha no desenvolvimento de sapatos. Em seu escritório, há outros 11 brasileiros. "Vou ao Brasil três vezes por ano e não sei quando vou voltar", diz.
A diversidade cultural do país também fascina os imigrantes. Clara Bohrer aproveitou os seis anos em que seu marido, Celso Luiz Kiefer, trabalhou no Cantão, para coordenar, junto com outras quatro estrangeiras, a publicação do livro "A Glimpse of China", uma coletânea de fotos tiradas por 27 pessoas de vários países.
A segurança é outra vantagem apontada pelos brasileiros. "Aqui não há assassinatos e assaltos como no Brasil", destaca Fabiana Ebert, 31, que chegou a Dongguan em janeiro de 2002 para trabalhar no escritório local da Scala, uma companhia brasileira de exportação de calçados. "No nosso setor, muitas empresas estão em dificuldades no Brasil e é difícil conseguir uma boa colocação profissional", afirma.
Fabiana é solteira, vem ao Brasil a cada seis meses e, sempre que pode, viaja pela Ásia. "Não sei quanto tempo ficarei na China, mas o retorno não faz parte dos meus planos no momento."


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