São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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VINICIUS TORRES FREIRE

Desastres e mistificações


Em cada fracasso da gestão pública, culpa-se a falta de recursos. Mas sempre falta dinheiro. Qual a prioridade?


QUANDO OCORREM desastres administrativos, como o apagão elétrico de FHC, a revolta nas cadeias de Geraldo Alckmin ou o paradão nos aeroportos sob Lula, vê-se um padrão algo absurdo de reação social e política ao problema.
Primeiro e óbvio, governo e oposição se insultam pelas respectivas inépcias, passadas e presentes.
Segundo, aparece um relatório técnico, antes desconhecido ou apenas ignorado pela opinião pública, que já antecipava o problema (mas relatórios técnicos costumam ser ignorados, mesmo quando públicos, pois quase todo mundo considera uma chatice lê-los).
Terceiro, descobre-se que este ou aquele fundo público não foi gasto como previsto no Orçamento. A verba foi "contingenciada": o dinheiro foi para os juros da dívida pública, para o superávit primário.
Trata-se de um padrão sistemático de mistificações. Primeiro, os governos e oposições que se acusam se sucederam no poder recentemente. Em muitos casos, os problemas não costumam ser estritamente causados ou resolvidos durante apenas um governo. Resultam de tendências de longo prazo e de fatores estruturais: não brotam nem são solucionáveis de um dia para o outro.
Decerto o apagão elétrico decorreu de grossa inépcia do governo FHC. Mas, depois dos remendos do tucanato, nada de essencial foi feito pelo governo Lula para dar solução ao caso. Desemprego: nenhum governo de quatro anos muda de maneira essencial o nível de emprego. Renda: melhorias na distribuição de renda do trabalho, que apareceram sob Lula, dependeram da abertura comercial e de reformas de FHC.
Segundo, falta dinheiro para tudo e há relatórios aos montes mostrando como o contingenciamento de verbas causa danos em quase todos os setores de governo.
Considere-se a situação dos hospitais públicos. Morre muito mais gente, e estropiam-se outras tantas, devido à precariedade dos hospitais públicos do que em desastres aéreos, com todo o respeito pelos mortos nessa tragédia estúpida e horrível da batida dos aviões.
Consultas médicas demoram meses. Grávidas não têm como fazer exame pré-natal. Em gravidez de risco, chegam ao hospital na hora do parto, isto quando são atendidas na hora. Milhares de mães e crianças morrem ou ficam com deficiências e seqüelas graves por falta desses cuidados simples: pré-natal e carinho com mulheres à beira do parto.
Cardíacos, hipertensos, doentes de câncer etc. definham entre as consultas espaçadas por meses, sem remédios e exames. Cerca de 40% do país não tem esgoto de verdade, mora perto da imundície ou pisa nela. Pessoas adoecem estupidamente por falta de água clorada.
Mesmo com menos superávit, mais crescimento, menos dívida etc., ainda por muito tempo vai faltar dinheiro, quando não competência, para resolver muita coisa. O Brasil é um país pobre e meio primitivo, e ainda o será por muito tempo.
O problema não é saber se faltou tal ou qual dinheiro para o desastre da vez. Importa saber quais as prioridades do governante, se ele cuida de fato delas e se a conta está sendo paga por quem pode mais. O carnaval sobre superávit ou verba contingenciada é mistificação. Só.

vinit@uol.com.br


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