São Paulo, quarta-feira, 06 de fevereiro de 2008

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Americanos já gastam com mais cautela

Para analistas, mudança pode ter grandes implicações em uma economia movimentada 70% pelo consumo

PETER S. GOODMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Por mais de meio século, os norte-americanos se demonstraram extraordinariamente habilidosos em descobrir novas maneiras de gastar dinheiro.
Nos anos 50 e 60, à medida que crescia a popularidade dos cartões de crédito, muitos começaram a jantar fora quando sentiam vontade ou adquirir televisores em prestações, em lugar de economizar os salários. Nos anos 80, milhões de norte-americanos investiam suas economias no mercado de ações, usando o ganho para bancar consumo superior à renda. Milhões de outros tomaram empréstimos despreocupadamente, oferecendo suas casas como garantia.
Mas os dias de despreocupação quanto ao crédito e ao risco podem ter chegado ao fim e um período de poupança involuntária se iniciou em muitos domicílios. Com a queda no nível do emprego e nos valores das casas e o inchaço nas dívidas, o mesmo país pioneiro nos empréstimos imobiliários sem entrada se vê sujeito a um imperativo incomum: viver nos limites de sua renda.
"Deixamos de usar nossos cartões de crédito", disse Lisa Merhaut, funcionária de uma empresa de telecomunicações em Leesburg, Virgínia, e cuja família em 2007 acumulou dívidas que não podia pagar em seus cartões. Agora, com renda familiar acima de US$ 100 mil anuais, ela paga as compras em dinheiro. "Nós temos o que nós temos. Só podemos gastar o dinheiro que está entrando."
A mudança, para alguns analistas, pode ter implicações que, para uma economia propelida principalmente pelo consumo, podem ser imensas.
"O longo colapso no índice de poupança dos EUA acabou", disse Ethan Harris, economista chefe do Lehman Brothers nos EUA. "As pessoas vão começar a poupar à maneira antiga, em lugar de permitir que o mercado de ações e a alta no valor dos imóveis residenciais façam o papel de poupança."
Em 1984, os norte-americanos economizavam mais de um décimo de sua renda, de acordo com o governo. Uma década depois, a metade. Agora, o índice é negativo, sugerindo que gastam mais do que a renda.
Para os 34 milhões de domicílios que transformaram parte do patrimônio imobiliário em capital nos últimos quatro anos, o índice de poupança era de menos 13% em 2006, segundo a Economy.com, da Moody's: eles estavam se endividando, usando seus ativos para financiar a vida cotidiana. Pelo final do ano passado, o índice de poupança do grupo continuava em menos 7%, em larga medida porque critérios mais rígidos dificultaram a obtenção de empréstimos.
"Para eles, o jogo acabou", disse Mark Zandi, economista-chefe da Economy.com. "Agora estão descobrindo os limites do crédito."
No passado, os norte-americanos descobriram muitas maneiras inovadoras de financiar os gastos, mesmo em momentos em que a austeridade parecia inevitável. Isso poderia voltar a acontecer. Os anos 70 -"a década do eu"-, tiveram a morte declarada na recessão dos anos 80, mas foram sucedidos pela "era da cobiça" e mais tarde pelo boom do mercado da internet, nos anos 90. Em longo prazo, a economia deveria continuar crescendo em ritmo que reflita os ganhos de produtividade e o aumento da população.
O retorno à realidade está bastante presente nos shoppings, onde os consumidores que optavam por lojas mais caras voltaram às cadeias que oferecem descontos. Wal-Mart e T. J. Maxx estão prosperando. Já Coach, Tiffany e Williams-Sonoma perderam impulso. Não muito tempo atrás, Elena Gamble teria observado o Cadillac estacionado do outro lado da rua, em sua casa de Elk City, Oklahoma, e sentido uma ponta de inveja. Ela ganha US$ 2.600 em uma penitenciária e o marido, US$ 2.000.
Eles têm uma dívida de US$ 10 mil e com juros elevados. Não vão ao cinema ou jantam fora, exceto visitas ocasionais ao McDonald's. Cancelaram o acesso à internet e perderam o carro por não conseguir manter as prestações em dia.
Quando eles olham para o Cadillac do outro lado da rua, a inveja foi substituída por pena pelo vizinho endividado. Por décadas, esse tipo de inveja representa um dos principais propulsores do crescimento econômico. De 1980 a 2007, a parcela do consumo na economia dos EUA subiu de 63% para 70%, segundo a Economy.com, e a proporção da renda posterior aos impostos absorvida pelo pagamento de dívidas domiciliares, de 11% para mais de 14%.
Mesmo depois que a linha de raciocínio "mercado de ações como máquina de dinheiro" se provou falsa, os gastos continuaram elevados. O Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) cortou as taxas de juros, os bancos ofereceram hipotecas com termos de pagamento frouxos e a fábula de que os preços das casas subiriam para sempre se instalou.
Entre 2004 e 2006, os norte-americanos extraíram mais de US$ 800 bilhões de suas casas em forma de vendas, empréstimos caucionados e hipotecas. "As pessoas começaram a considerar crédito como equivalente a poupança", disse Michelle Jones, vice-presidente do Consumer Credit Counseling Service of Greater Atlanta. Alguns norte-americanos têm patrimônio suficiente para continuar a gastar o bastante e estimular a economia. Os 20% mais ricos geram 50% do consumo, segundo Dean Maki, economista-chefe da Barclays Capital para os EUA.
Os outros, alguns dizem que logo voltarão pedindo mais. "O consumidor norte-americano sempre viveu no vermelho", diz Lendol Calder, autor de "Financing the American Dream: A Cultural History of Consumer Credit" [financiando o sonho americano: uma história do crédito ao consumidor].
Os conselheiros de crédito estão sobrecarregados de pedidos, não só de pessoas de recursos modestos mas também de profissionais com salários anuais acima de US$ 100 mil, que têm dificuldade em distinguir entre necessário e desejado, em função do acesso de sempre a financiamentos.
"Quanto mais uma pessoa viveu com renda alta, mais difícil se torna cortar os gastos", disse Manuel Navarro, da Money Management International, em San Diego. "Eu pergunto se realmente precisam de um televisor de 60 polegadas em suas salas."
Fran Barbaro, 50, tem mestrado em administração de empresas e passou por diversos empregos no setor de computação, com salário de US$ 150 mil ao ano. Sua carteira de investimento em ações era avaliada em US$ 1 milhão. A casa de três quartos em Boston era decorada com obras de arte originais.
Mas um divórcio, problemas de saúde e a maternidade esgotaram a sua poupança. Hoje, a casa vale menos do que a dívida que contraiu para comprá-la, e ela deve mais US$ 200 mil a bancos, operadoras de cartões de crédito e autoridades tributárias.
Barbaro diz que sabia estar vivendo além de seus recursos. No entanto, a casa dela precisava de reforma. Seus dois filhos precisavam de reforço escolar, o que lhe custava US$ 25 mil ao ano. As contas médicas se multiplicavam. "Eram despesas cotidianas. E sempre havia dinheiro." Até que acabou. Ela recebe US$ 5.200 líquidos ao mês, mas US$ 4.400 do total vão para o pagamento de dívidas.
Barbaro alugou sua casa enquanto negocia um corte em sua hipoteca. Foi para um apartamento, onde os dois meninos dormem no quarto e ela em um sofá-cama na sala.
"É a pior coisa. Como salvar o que você tem e, com sorte, voltar à vida anterior?"


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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