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Argentina está condenada pela
covardia de dirigentes, diz escritor
03.mai.02/Reuters
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Manifestantes choram em protesto contra o governo Duhalde |
JOSÉ ALAN DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma das citações mais corriqueiras do presidente Eduardo
Duhalde, desde que assumiu seu
posto, nos primeiros dias de janeiro, é emprestada do sociólogo
brasileiro Hélio Jaguaribe.
"A Argentina é um país condenado ao êxito", disse Jaguaribe,
78, ainda nos anos 70, quando o
país estava mergulhado em uma
ditadura militar que resultou em
9.000 desaparecidos pelas contas
oficiais ou 30 mil, segundo organizações de direitos humanos.
Para o escritor argentino Juan
José Saer, 64, radicado na França
desde 1968, a Argentina é condenada pela covardia de sua classe
dirigente. Saer prega uma ruptura
com as exigências de organismos
multilaterais de crédito e, no caso
extremo, atitudes como o bloqueio de fundos de empresas estrangeiras. Ele próprio classifica
esses gestos como uma ""imolação". ""É uma forma de imolar-se?
Sim. Mas é um meio de chamar a
atenção. Se não conseguimos as
coisas do bom jeito, que façamos
do mau jeito." Saer diz que a crise
não é recente, mas resultado de
uma história de convulsões que tiveram início no processo de formação do Estado argentino, em
1810. A seguir, trechos da entrevista, concedida à Folha de Paris.
Folha - Um de seus compatriotas,
o também escritor Marcos Aguinis,
disse que ""os argentinos estão sofrendo desde a segunda metade do
século 20 e que já se encontram na
segunda geração de desgraçados".
O senhor concorda?
Juan José Saer -A história argentina, desde as origens da nação,
em 1810, tem sido uma história
cheia de convulsões econômicas e
políticas. É fato que houve períodos em que dessas crises saíram
instituições e certo desenvolvimento econômico, sobretudo entre o final do século 19 e 1930. A
partir de 1930, iniciou-se uma série de distúrbios militares, culminando com o golpe de 1976. Talvez Aguinis não tome as coisas
por onde tem que tomar. A aparição das marchas proletárias e da
classe média, que passam a integrar o processo social na Argentina, traz consigo um fenômeno: as
classes que já possuem as riquezas. E os exportadores entram em
oposição com essas novas forças
sociais. Os conflitos resultantes se
agudizam com a ascensão do peronismo (no final dos anos 40).
Ao mesmo tempo, houve influência de fatores externos. Os interesses estrangeiros começaram a adquirir uma virulência que conduziu a golpes de Estado na América
Latina. Na Argentina, se incorporou uma questão importante, a
dívida externa que foi contraída
por esses governos.
Folha - O senhor escreveu que faz
20, senão 40 ou 50 anos, que os governos argentinos aplicam planos
de austeridade para sanear as finanças e que aqueles que em 1960
protestavam contra o FMI são os
pobres de hoje. Argentina e Brasil
estão condenados ao fracasso?
Saer - Estão condenados pela
covardia de seus dirigentes. Não
foram eleitos para isso. De la Rúa
não foi eleito para ser covarde.
Menem tampouco. Menem dizia
que iria desenvolver a indústria e
o campo. No dia seguinte à vitória, se aliou aos ultraliberais que
colaboraram com a ditadura. Na
Argentina, não se pode fazer mais
nada do que já foi feito. Chegamos ao fundo do poço. Os países
têm de se proteger das exigências
ultraliberais. Estamos em uma espécie de guerra econômica, de liquidação, de darwinismo social.
Folha - Qual foi o grande erro da
Argentina?
Saer -Com (José) Martínez de
Hoz (ministro da Economia no
governo militar de Jorge Videla,
1976-1981) houve a questão da paridade cambial com o dólar, da
sobrevalorização monetária, o período da ""plata dulce", quando os
argentinos compravam casas em
Miami, iam à Europa. Eu me sentia envergonhado porque sabia
que, enquanto estavam matando
gente, esses argentinos estavam
contentíssimos com o governo,
com o Mundial de futebol... Antes
de irem embora, esses dirigentes
estatizaram a dívida privada. A
dívida externa que estava em US$
8 bilhões foi para US$ 43 bilhões.
O petróleo na Argentina já não
nos pertence, não temos companhia aéreas. Eu penso que um governo tem que recuperar todas essas empresas. E, se não as recuperar, virar sócio.
Folha - Pode-se dizer hoje que
existe um Estado argentino?
Saer -Existe um Estado argentino. O que não há é um governo
capaz de materializar os desejos
da população.
Folha - Parte dos governadores
justicialistas trabalha pela convocação de eleições para presidente.
Falta legitimidade a Duhalde?
Saer - Se você me perguntar o
que penso de Duhalde, não me
atreverei a dizer, porque sou um
homem educado. A legitimidade
do governo Duhalde só pode ser
conseguida em um gabinete de
união nacional. O governo dele é
um governo de uma facção. Considero prematuro que haja eleições. Assim, a única legitimidade
que pode existir hoje é um governo de união nacional em que intervenham homens não só da política, mas de outras instituições.
De outra maneira é impossível
obter uma verdadeira legitimidade. A atual crise tem um lado positivo. Essa espécie de eletrochoque devolveu o país a uma situação de lucidez. O que faz falta à
Argentina hoje, para começar, é
uma ruptura frontal com o FMI
no sentido de que é inadmissível
colocar em prática os planos que
eles propõem. De outra forma, se
vai perdurar infinitamente essa
pauperização. Onde nos levou a
política de privatizações? Onde
nos levou a política de paridade
cambial de Cavallo?
Folha - Uma das características
que diferenciavam a Argentina do
restante da América Latina era a
presença de uma enorme classe
média. Como o senhor vê essa pauperização da Argentina?
Saer -No começo do século 20 se
criou uma classe média muito importante que fornecia os melhores valores para o país. Foi dessa
classe média que saíram escritores, pintores, filósofos, pensadores, sociólogos. Ao mesmo tempo, essa classe média constituiu
um aporte maciço muito importante para as instituições democráticas. Havia todo um sentimento de democracia que nos
anos 60 começou a desaparecer.
Começou a haver cada vez mais
um sentimento de oposição, de
ódio entre as classes sociais, entre
grupos políticos. Nos anos 70, o
processo de violência no país se
agudizou. Mataram crianças, jovens, mulheres grávidas...
Folha - Analistas dizem que a Argentina perdeu pelo menos uma
geração de dirigentes no processo
de perseguição da ditadura militar.
O país perderá outra geração com
essa crise de agora?
Saer -O exílio é uma tradição na
Argentina. Isso acontece em muitos países do Terceiro Mundo. Vivemos em uma sociedade na qual
os países ricos são como vampiros, que tiram todo o sangue dos
países pobres.
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