São Paulo, segunda-feira, 06 de maio de 2002

Texto Anterior | Índice

Argentina está condenada pela covardia de dirigentes, diz escritor

03.mai.02/Reuters
Manifestantes choram em protesto contra o governo Duhalde


JOSÉ ALAN DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma das citações mais corriqueiras do presidente Eduardo Duhalde, desde que assumiu seu posto, nos primeiros dias de janeiro, é emprestada do sociólogo brasileiro Hélio Jaguaribe.
"A Argentina é um país condenado ao êxito", disse Jaguaribe, 78, ainda nos anos 70, quando o país estava mergulhado em uma ditadura militar que resultou em 9.000 desaparecidos pelas contas oficiais ou 30 mil, segundo organizações de direitos humanos.
Para o escritor argentino Juan José Saer, 64, radicado na França desde 1968, a Argentina é condenada pela covardia de sua classe dirigente. Saer prega uma ruptura com as exigências de organismos multilaterais de crédito e, no caso extremo, atitudes como o bloqueio de fundos de empresas estrangeiras. Ele próprio classifica esses gestos como uma ""imolação". ""É uma forma de imolar-se? Sim. Mas é um meio de chamar a atenção. Se não conseguimos as coisas do bom jeito, que façamos do mau jeito." Saer diz que a crise não é recente, mas resultado de uma história de convulsões que tiveram início no processo de formação do Estado argentino, em 1810. A seguir, trechos da entrevista, concedida à Folha de Paris.

Folha - Um de seus compatriotas, o também escritor Marcos Aguinis, disse que ""os argentinos estão sofrendo desde a segunda metade do século 20 e que já se encontram na segunda geração de desgraçados". O senhor concorda?
Juan José Saer -
A história argentina, desde as origens da nação, em 1810, tem sido uma história cheia de convulsões econômicas e políticas. É fato que houve períodos em que dessas crises saíram instituições e certo desenvolvimento econômico, sobretudo entre o final do século 19 e 1930. A partir de 1930, iniciou-se uma série de distúrbios militares, culminando com o golpe de 1976. Talvez Aguinis não tome as coisas por onde tem que tomar. A aparição das marchas proletárias e da classe média, que passam a integrar o processo social na Argentina, traz consigo um fenômeno: as classes que já possuem as riquezas. E os exportadores entram em oposição com essas novas forças sociais. Os conflitos resultantes se agudizam com a ascensão do peronismo (no final dos anos 40). Ao mesmo tempo, houve influência de fatores externos. Os interesses estrangeiros começaram a adquirir uma virulência que conduziu a golpes de Estado na América Latina. Na Argentina, se incorporou uma questão importante, a dívida externa que foi contraída por esses governos.

Folha - O senhor escreveu que faz 20, senão 40 ou 50 anos, que os governos argentinos aplicam planos de austeridade para sanear as finanças e que aqueles que em 1960 protestavam contra o FMI são os pobres de hoje. Argentina e Brasil estão condenados ao fracasso?
Saer
- Estão condenados pela covardia de seus dirigentes. Não foram eleitos para isso. De la Rúa não foi eleito para ser covarde. Menem tampouco. Menem dizia que iria desenvolver a indústria e o campo. No dia seguinte à vitória, se aliou aos ultraliberais que colaboraram com a ditadura. Na Argentina, não se pode fazer mais nada do que já foi feito. Chegamos ao fundo do poço. Os países têm de se proteger das exigências ultraliberais. Estamos em uma espécie de guerra econômica, de liquidação, de darwinismo social.

Folha - Qual foi o grande erro da Argentina?
Saer -
Com (José) Martínez de Hoz (ministro da Economia no governo militar de Jorge Videla, 1976-1981) houve a questão da paridade cambial com o dólar, da sobrevalorização monetária, o período da ""plata dulce", quando os argentinos compravam casas em Miami, iam à Europa. Eu me sentia envergonhado porque sabia que, enquanto estavam matando gente, esses argentinos estavam contentíssimos com o governo, com o Mundial de futebol... Antes de irem embora, esses dirigentes estatizaram a dívida privada. A dívida externa que estava em US$ 8 bilhões foi para US$ 43 bilhões. O petróleo na Argentina já não nos pertence, não temos companhia aéreas. Eu penso que um governo tem que recuperar todas essas empresas. E, se não as recuperar, virar sócio.

Folha - Pode-se dizer hoje que existe um Estado argentino?
Saer -
Existe um Estado argentino. O que não há é um governo capaz de materializar os desejos da população.

Folha - Parte dos governadores justicialistas trabalha pela convocação de eleições para presidente. Falta legitimidade a Duhalde?
Saer -
Se você me perguntar o que penso de Duhalde, não me atreverei a dizer, porque sou um homem educado. A legitimidade do governo Duhalde só pode ser conseguida em um gabinete de união nacional. O governo dele é um governo de uma facção. Considero prematuro que haja eleições. Assim, a única legitimidade que pode existir hoje é um governo de união nacional em que intervenham homens não só da política, mas de outras instituições. De outra maneira é impossível obter uma verdadeira legitimidade. A atual crise tem um lado positivo. Essa espécie de eletrochoque devolveu o país a uma situação de lucidez. O que faz falta à Argentina hoje, para começar, é uma ruptura frontal com o FMI no sentido de que é inadmissível colocar em prática os planos que eles propõem. De outra forma, se vai perdurar infinitamente essa pauperização. Onde nos levou a política de privatizações? Onde nos levou a política de paridade cambial de Cavallo?

Folha - Uma das características que diferenciavam a Argentina do restante da América Latina era a presença de uma enorme classe média. Como o senhor vê essa pauperização da Argentina?
Saer -
No começo do século 20 se criou uma classe média muito importante que fornecia os melhores valores para o país. Foi dessa classe média que saíram escritores, pintores, filósofos, pensadores, sociólogos. Ao mesmo tempo, essa classe média constituiu um aporte maciço muito importante para as instituições democráticas. Havia todo um sentimento de democracia que nos anos 60 começou a desaparecer. Começou a haver cada vez mais um sentimento de oposição, de ódio entre as classes sociais, entre grupos políticos. Nos anos 70, o processo de violência no país se agudizou. Mataram crianças, jovens, mulheres grávidas...

Folha - Analistas dizem que a Argentina perdeu pelo menos uma geração de dirigentes no processo de perseguição da ditadura militar. O país perderá outra geração com essa crise de agora?
Saer
-O exílio é uma tradição na Argentina. Isso acontece em muitos países do Terceiro Mundo. Vivemos em uma sociedade na qual os países ricos são como vampiros, que tiram todo o sangue dos países pobres.


Texto Anterior: Oposição lidera pesquisa eleitoral
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.