São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

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"É um alívio não depender do mercado"

George Soros, megainvestidor que derrubou a libra nos anos 90, admite que seu fundo já não tem o poder de outros tempos

Administrador já não arrisca toda a fortuna em uma transação, como já fez, para poder deixar legado em sua rede de organizações

DANIEL DOMBEY
DO "FINANCIAL TIMES"

Estamos no dia mais quente do ano, acordes apocalípticos ribombam pela nave de uma igreja vazia e George Soros está descrevendo seu complexo de messias. O homem que lucrou US$ 1 bilhão em um dia apostando contra o Banco da Inglaterra sempre se sentiu como uma pessoa à parte. Em criança, Soros tinha o que descreve como "fantasias messiânicas".
"Eu sentia que só estava esperando o tempo passar, até que encontrasse o meu lugar no mundo", diz com voz roufenha, um lembrete de suas origens no centro da Europa. "Eu não me sentia à vontade na posição que ocupava."
Hoje, no entanto, ele se vê em uma posição criada para alimentar egos superdimensionados -o Mosimann's, um clube gastronômico instalado em uma antiga igreja presbiteriana de Londres. O dia está reservado a treinamento de funcionários e o lugar parece deserto. Mas seremos servidos da mesma maneira, já que gastamos 150 numa sala privada.
O distanciamento olímpico de Soros se estende ao ponto de fingir distração ou indiferença quanto ao maior de seus feitos, a "quarta-feira negra", 16 de setembro de 1992.
A aposta de Soros na desvalorização naquele dia da libra esterlina conduziu à derrocada do governo de John Major e à eleição dos trabalhistas e ingressou no folclore político como data inesquecível. Menos, aparentemente, para o homem que ganhou mais dinheiro com os acontecimentos.
"Foi uma quarta-feira?", pergunta. "Foi uma quinta, acho."
"Quarta", eu confirmo. "Definitivamente quarta."
"É mesmo?", ele volta a perguntar, parecendo se distanciar do homem que foi no passado.
Hoje Soros, 75, já não movimenta mercados. Ele admite que seu Quantum Fund, tão temido nos anos 90, não é mais um dos protagonistas cruciais das finanças. Mas as ambições dele parecem ter crescido, e não o contrário. O empresário estabeleceu uma rede de fundações de caridade que cobre o planeta, orgulha-se de ter ajudado na Revolução das Rosas, que derrubou Eduard Shevardnadze da Presidência da Geórgia, em 2003, e contribuiu com muito dinheiro para a oposição ao governo de George W. Bush.
Soros também escreveu nove livros, a maior parte dos quais nos últimos dez anos, dedicados à "refletividade", uma teoria que ele defende ardorosamente. Tendo lido o mais recente deles -"The Age of Fallibility" [A era da falibilidade]-, eu tento adiar o momento em que começaremos a debater conceitos abstratos.
Em lugar disso, enquanto Soros saboreia lentamente o seu Campari com soda, pergunto sobre 1944, o ano em que os nazistas invadiram sua Hungria natal e mataram milhares de judeus, como Soros. Ainda que tenha sido forçado a entregar notificações de deportação, ele considera que aquele foi o melhor ano de sua vida.
"Foi indubitavelmente um ano de formação", diz ele sobre a era, quando seu pai obteve documentos falsos que salvaram as vidas de sua família e de muitas outras pessoas. "Eu era muito próximo ao meu pai e ele me transmitiu toda a sua sabedoria em uma demonstração prática do que é preciso fazer para sobreviver. Boa parte de minhas aventuras subseqüentes no mundo financeiro e minhas empreitadas filantrópicas foram influenciadas por ele, por aquela situação."
"Aprendi que há momentos em que as regras normais não se aplicam", diz. "E também o fato de que a passividade pode ser mais perigosa. Talvez assumir um risco seja menos arriscado." Ele se ajeita na cadeira, incomodado pelo calor.
Soros se alterna entre momentos imperiosos, grandiloqüentes e humildes. Ele expressa satisfação quanto a algumas das mais lisonjeiras descrições feitas sobre ele, tais como "o homem que quebrou o Banco da Inglaterra" e "o estadista sem Estado". Mas também escuta, acena com a cabeça e oferece adjetivos menos elogiosos sobre si mesmo e sobre seus argumentos quando pergunto se ele não é apenas um bilionário tentando se passar por grande pensador. "Arrogante", ele sugere; "obsceno", ele profere, mais tarde.
Aponto para as diferenças entre ele e o pai, que ele classifica como sua maior influência. Ambos basearam sua formação em experiências que tiveram durante guerras -o pai em um campo de prisão siberiano durante a Revolução Russa. Mas o pai, depois disso, jamais procurou o dinheiro ou o poder.
"De certa forma, ele saiu alquebrado da experiência", diz Soros sobre o pai, advogado que promoveu a primeira e única revista literária em esperanto mas terminou a vida dirigindo uma barraquinha de café expresso em Coney Island, Nova York. "Ele evitava a ribalta."

Começo humilde
Essa não é a primeira ocasião em que Soros vê os fundos de um restaurante. Depois de se mudar para o Reino Unido, em 1947, ele passou por vários empregos humildes quando estudava na London School of Economics. Trabalhou no Quaglino's, sofisticado restaurante londrino, e se alimentava principalmente de profiteroles.
Mas foram seus estudos na LSE que se provaram mais influentes, especialmente o contato fugaz que manteve com Karl Popper, filósofo que pregava uma "sociedade aberta", em vez dos totalitarismos do nazismo e do comunismo.
O que convenceu Soros foi a percepção de Popper de que, já que a humanidade é capaz de cometer erros, as sociedades deveriam ser receptivas às novas idéias. Soros mesmo ia mais além, argumentando que é inevitável que as pessoas errem.
E é nesse ponto que a idéia de "refletividade" começa a se fazer sentir. A idéia é que os equívocos conceituais das pessoas interagem com a realidade -seja ao derrubar uma moeda, seja pela promoção de uma idéia como a guerra ao terrorismo de Bush. Soros jura que a idéia o ajudou a fazer fortuna.
"Eu realmente não tenho problemas quanto a ser rico", sorri. Ele diz que se permite pequenos luxos, tais como manter uma equipe de funcionários em seu apartamento em Londres, embora passe a maior parte do tempo nos EUA.
Soros se transferiu para Nova York, para trabalhar como administrador de fundos "hedge", em 1956. Duas décadas mais tarde, depois de acumular US$ 30 milhões, ele passou por uma crise de meia idade.
"Eu estava abalado, criticava-me o tempo todo. Pensei muito, e sem piedade, sobre os motivos pelos quais precisava daquele dinheiro", diz, enquanto ataca uma salada de endívia. "Como parte do processo, decidi criar o Open Society Fund."
Soros classifica a rede de organizações que financia de "mistura de fundação e movimento". A rede subsidiou salários de ministros na Geórgia e quer promover transparência em governos, direitos humanos e liberdade de imprensa.

Talento
Mas o que o torna mais conhecido é o seu talento para ganhar dinheiro. Há muitas histórias sobre Soros, o financista, sobre os milhões que ele perdeu na Rússia e no Japão, e sobre seu desejo permanente de aumentar as apostas.
O lucro de US$ 1 bilhão na "quarta-feira negra", por exemplo, surgiu de uma aposta de US$ 10 bilhões.
O financista já não tem o mesmo apetite por risco em parte porque ele deseja que suas fundações perdurem depois que morrer. Isso quer dizer que os dias em que ele colocava toda a sua fortuna em risco em uma única transação são coisa do passado.
"É um alívio não ser dependente do mercado", diz, acrescentando que considera que seus livros e sua filantropia serão o seu legado.
Soros também quer mudar a opinião pública e, na última eleição, organizou uma turnê em que proferiu palestras contra Bush -algo, sugiro, que poderia ser visto como um tolo capricho de homem rico. "Já que sou rico, qualquer tolice que eu cometa será uma tolice de rico", ele meio ri, meio fala.
E não é estranho que um bilionário escreva um tratado contra o consumismo norte-americano e contra a maneira pela qual as empresas procuram estimular desejos?
"Eu obtive sucesso no sistema capitalista", responde. "Quem está mais qualificado a criticar a globalização do que alguém que floresce com ela?"


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