São Paulo, quarta-feira, 07 de janeiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um balanço de 20 anos

PAULO RABELLO DE CASTRO

O noticiário de fim de ano martelou o balanço de 2003 na política e na economia. Deu para perceber o tom positivo e o saldo a favor da administração Lula, principalmente do próprio presidente. Mais além da avaliação de apenas um ano de governo, período insuficiente para a atribuição de um julgamento equidistante, acentuaram-se em 2003 ao contornos de uma crescente estabilidade político-institucional no país, que já estava lá desde a superação da morte de Tancredo Neves, o governo de Sarney, a eleição de Collor e a execução do seu impeachment com a adequada superação de seus efeitos, o Real, as duas administrações civilistas de Fernando Henrique, para desembocar na falsa (porém necessária ao script) ameaça embutida na eleição de Lula e do PT e, finalmente, o teste duro do seu primeiro ano administrativo, mediante a superação das dúvidas dos mercados quanto ao centrismo do exercício do poder no Brasil. O sucesso internacional do presidente Lula, mais do que seus feitos domésticos, qualifica e confirma a vocação centrista da política brasileira de longo prazo, na qual começa a ficar claro que os grandes interesses do país são largamente invariantes aos eventuais inquilinos do Palácio do Planalto, ainda que cada um ponha sua marca pessoal e, eventualmente, partidária, ao exercício do mandato.
É essa a constatação das pessoas, ao observar, com maior ou menor atenção, não importa, a cena brasileira dos últimos 20 anos desde 1984, da transição castrense para a norma democrática e civil, que afastou o medo do revertério autoritário e, mais importante ainda, acentuou a capacidade das instituições brasileiras de produzirem soluções para crises da política (Collor, impeachment, governo de esquerda) ou da economia (megainflação, indexação geral, desvalorização cambial, crise de energia, pobreza e má distribuição) com resultados não só favoráveis às melhores expectativas dos mercados como, principalmente, consolidadores da estabilidade político-institucional. É essa capacidade política do Brasil, firmada nos últimos 20 anos, o que credencia de fato o país a esperar reduções continuadas no chamado risco-país, medido pelo "spread" dos títulos brasileiros, que hoje voltou a estar abaixo dos 500 pontos de ágio de risco e pode perfeitamente recuar até a faixa entre 200 e 300 pontos, lembrando que esse mesmo ágio subira aos píncaros de 2.400 pontos em setembro de 2002, pouco antes da eleição de Lula.
O risco "de" país que merece recuar ainda mais não é esse, como calculado pela opinião corrente dos mercados a respeito do deságio dos títulos brasileiros, e sim, o "credit rating", a classificação de risco atribuída ao Brasil por agências internacionais de avaliação.
A nota chamada "soberana", aquela que reflete a probabilidade de o Banco Central honrar a transferência de pagamentos dos títulos públicos e privados nos próximos cinco anos, pelas projeções de futuras disponibilidades de divisas (nossas reservas oficiais e a vontade soberana de pagar os compromissos), ainda é qualificada por aquelas agências estrangeiras como de "risco alto", caracterizado por garantias insuficientes e, portanto, elevada chance de não-pagamento.
Trata-se de uma avaliação há muito equivocada. Menos pelo padrão dos indicadores financeiros de reservas livres e/ou de exportações sobre encargos financeiros ou sobre dívida, estes ainda relativamente fracos por culpa exclusiva da má seleção de prioridades de instrumentos de políticas monetária-fiscal. Mas avaliação equivocada, sim, pelo elevado padrão de estabilidade político-institucional exibido pelo Brasil nos últimos 20 anos, muito superior ao de muitos dos seus vizinhos e, sobretudo, do de outros países emergentes na Europa e na Ásia cujas notas de "credit rating" têm sido cronicamente melhores que as do Brasil.
Isso para não falar em comparações que são válidas e possíveis entre os riscos de algumas corporações, avaliadas pelas agências de "rating" tradicionais como "padrão de investimento" e que se revelaram nada mais que um castelo de cartas (no caso, cartas de crédito falsas), como no exemplo recente da Parmalat, empresa até ontem considerada "investment grade". Melhores precisarão ser, daqui para frente, as avaliações de governança corporativa de empresas, porque é disso que se trata quando somos surpreendidos por casos de grande sucesso se transformando em casos de polícia. E o mesmo conceito se segue em relação a países cujo padrão de governança -a tal estabilidade político-institucional- é pessimamente avaliado por agências, onde casos de patinhos feios como o Brasil se revelam resilientes e bons pagadores (embora amargando taxas de risco monumentais) e outros, considerados exemplares, revelam-se inadimplentes mais adiante.
O principal ainda está por vir. O Brasil tampouco fez seu dever de casa completo para reverter o quadro de má avaliação de risco. Tem um discurso ainda confuso sobre seus objetivos econômicos e políticos, embora melhorando nesse aspecto. Deve a si mesmo e aos observadores externos mais unidade de propósitos no campo das realizações materiais. Isso se chama ter um plano econômico de governo. Precisa de um discurso mais consistente sobre o que não aceita como imposição externa. E, sobretudo, perceber que não basta ganhar o titulo de "darling" das instituições financeiras multilaterais para pagar menos "spread", seja aqui dentro ou lá fora. São os coeficientes de dependência e de vulnerabilidade do Brasil que precisam ser reduzidos com muito maior velocidade. E isso não se faz apenas com marketing político.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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