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LUÍS NASSIF
Ritos da passagem
Quando eu morrer amanhã,
vou querer meu quarto
cheio, cercado por minhas mulheres -filhas, tias e irmãs e a companheira dos melhores dias. Não
as espero aliviadas, para não liquidar com minha auto-estima,
mas as quero conformadas, com a
sabedoria dos que aprenderam a
conviver com o inevitável.
Posto que, como recompensa
pelo martírio diário do fechamento, Deus concede aos jornalistas a suprema graça da morte súbita, não haverá tempo para as
últimas palavras. Desperdiçarei
meu treinamento, dos 8 aos 14
anos, enquanto me encantava
com as últimas palavras dos "Homens e Mulheres Célebres" da Tesouro da Juventude, edição de
1925.
Sendo inesperada a passagem,
mais uma vez serei vítima de minha eterna distração. Levarei algum tempo para me dar conta do
inusitado da situação, de ver no
mesmo ambiente enevoado, no
súbito infinito da passagem, minhas filhas mais novas com seus
avós, que, por uma dessas falsetas
temporais, não tiveram chance de
conhecer. As mais novas repetirão
que "papai só faz rolo"; e minha
mãe dirá pela milésima vez para
eu parar de ser distraído.
Posto que, nesses instantes de
passagem, Deus nos faculta o corte transversal do tempo, poderei
escolher o ambiente da confraternização. Provavelmente ficarei
entre o quartão, no fundo da casa
da minha infância, que abrigava
nossas celebrações natalinas, e a
sala da casa da tia Rosita, onde,
criança, me encolhia em um canto ouvindo as serestas de meu tio.
Ou ainda na sala da casa de meu
avô, aqui em São Paulo, onde, no
Dia dos Pais, se preparava a bacalhoada que reunia filhos e netos. Não pensarei em nenhuma
das muitas casas em que morei
depois de adulto, talvez pela orfandade da casa em que nasci.
Haverá música da boa, porque
a passagem não prescinde de bom
fundo musical. Aceitarei de bom
grado a "Bachiana Número 4", de
Villa-Lobos, e a "Flor do Cafezal",
com Cascatinha e Inhana. Minha
vida não foi suficientemente piedosa para aspirar a Garoto e Jacob me aguardando com seus
bandolins. Mas haverá a voz cristalina de minha mãe cantando
"Chuá Chuá". E haverá tia Mariana, como que saída do fundo
do tempo, cantando "Linda Flor"
e contando histórias com aquela
capacidade de compor frases que
parecia da tia Olímpia, a louca de
Ouro Preto.
Na celebração intemporal dos
afetos, haverá a figura reverencial
do meu avô Issa, me abrigando
embaixo de seu braço protetor, ao
lado de meu pai Oscar. Minha
avó Martha ficará suspirosa em
um canto, conversando com a bisavó Mariquinha.
Farei questão absoluta de ser filho e neto, respeitando a precedência das gerações. O lugar central da mesa será de meu avô e
meu pai. Mas não abrirei mão de
manter, num canto da mesa, mas
no meu entorno, o pequeno arquipélago das minhas meninas.
As meninas ficarão surpresas de
verem, nos avós, valores, modos,
tiques que transmitimos a elas.
Vó Tê se surpreenderá ao identificar seu estilo gozador tanto na
neta mais velha, a Mariana,
quanto na penúltima, a Bibi.
Vão me supor distraído, mas
com o rabo dos olhos verei minha
filha Luizinha me acompanhando com aquele olhar dos que sabem transmitir afeto sem arrebatamento. E não haverá como deixar de ouvir os gritos exuberantes
de Mariana e da Clarinha, de
quem não consegue transmitir
afeto sem arrebatamento.
De cada uma de minhas meninas levarei um instante intenso
de recordação. De Mariana, a
fantasia de baiana, no carnaval
de seus dez anos. De Luizinha, o
abraço apertado que meu deu aos
seis anos, celebrando nosso reencontro. Da Bibi, o olhar afetuoso
dos três meses de idade, que me
conquistou para sempre. Da Dodó, o bico armado de quem nasceu para dar e receber beijos. Da
Clarinha, o abraço apertado e a
declaração que desmontou o avô.
Da Ruiva, a dedicatória do primeiro livro e o sorriso do primeiro
encontro.
Como último desejo do lado de
cá, sentirei em meu rosto o afago
da mãe quente de minha mãe.
Como primeiro contato com o lado de lá, ela dando ordens sobre
como me comportar. Tudo isso
quando eu morrer amanhã.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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