São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2008

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ENTREVISTA
EDMAR BACHA


"Excesso de demanda interna pressiona a inflação no país"

Um dos criadores dos planos Cruzado e Real, economista diz que governo vai na direção certa "andando de costas"

ROBERTO MACHADO
DA SUCURSAL DO RIO

A trajetória profissional do economista Edmar Bacha, 66, está diretamente associada a um tema: inflação. Nos anos 70, quando escreveu uma fábula crítica à ditadura militar que se tornou célebre- a da "Belíndia", híbrido entre Bélgica rica e Índia pobre-, mirou um país em que crescimento com inflação alargava a desigualdade social. Depois, foi um dos formuladores do Plano Cruzado, em 1986, e viveu no governo de José Sarney a glória e o fracasso no combate à inflação.
Em 1993, de volta a Brasília, foi um dos responsáveis pelo Plano Real, nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Quando saiu da cena oficial e voltou ao Rio de Janeiro, ainda no primeiro mandato de FHC, os problemas da política econômica já eram outros: câmbio valorizado, dívida pública, desequilíbrio das contas externas.
Mas eis que nos últimos meses a inflação voltou. Primeiro, lá fora, com alimentos e petróleo em disparada. Agora, com o IPCA-15 registrando alta de 0,9% em junho, reacendendo antigos temores no front doméstico. Na entrevista a seguir, Bacha analisa os fatores que explicam a escalada de preços- e o que faria para combatê-la se estivesse em Brasília.
Ex-presidente do IBGE, do BNDES e da Associação Brasileira dos Bancos de Investimento, Bacha foi professor da PUC no Rio. Mantém os laços com a vida acadêmica: é diretor da Casa das Garças, um instituto que reúne banqueiros e professores para debater economia. Ele trabalha hoje como consultor-sênior do banco de investimentos Itaú-BBA.

 

FOLHA - O senhor já viu muitas inflações. Como avalia a atual ?
EDMAR BACHA
- Lembra a que tivemos no fim da década de 60 e no início dos anos 70. Por dois fatores principais. Havia uma inflação importada, provocada por um boom econômico mundial, associada à emergência do Japão como potência e pelos gastos públicos dos EUA por causa da guerra do Vietnã. Os preços das commodities subiram muito, o que levou ao primeiro choque do petróleo [em fins de 1973]. O segundo fator: o milagre econômico brasileiro, marcado por um crescimento acelerado, bem acima do registrado no período anterior. Com isso, apesar da melhora dos preços das nossas exportações, houve um déficit comercial crescente. Havia, portanto, excesso de demanda interna. Exatamente como há hoje. Mas a inflação era mais elevada, cerca de 20% ao ano.

FOLHA - Qual fator é o preponderante na atual pressão inflacionária, o externo ou o interno ?
BACHA
- A pressão interna. E aí entra outra semelhança com os anos 70. A inflação não se revelava inteira porque havia um certo controle de preços e salários. Especialmente em 1972 e 1973, o Delfim Netto [então ministro da Fazenda] sabia quais produtos e em quais lugares os preços eram coletados. Assim, controlava indiretamente os índices da Fipe, em São Paulo, e da Fundação Getulio Vargas, no Rio. Além disso, havia o Conselho Interministerial de Preços, em que as indústrias tinham acordos com o governo. Hoje não temos isso. Mas há o congelamento do preço da gasolina e do gás de cozinha. Por isso, não estamos sentindo inteiramente o efeito da inflação.

FOLHA - Numa escala que vai de zero a dez, em que dez é alerta máximo com a inflação, em que ponto estamos?
BACHA
- São duas escalas. Na que mede o excesso de demanda, já estamos em oito. Mas na escala da indexação estamos perto de zero. Na década de 70, e esse era o grande problema, tínhamos indexação formal, determinada por lei. Hoje, há apenas os resíduos disso: em aluguéis e alguns preços administrados. Mas se trata de indexação frágil. Nos aluguéis, há negociação entre proprietários e inquilinos. O problema da indexação não é que ela acelere a inflação, é que ela torna a inflação imune à política monetária.

FOLHA - Há risco de a indexação voltar, ainda que menos generalizada?
BACHA
- Acho que não corremos esse perigo. Estamos vacinados. Outros países tiveram escalada de preços e salários, nós também podemos ter. Mas isso não significa indexação. Essa escalada é interrompida com política monetária. Na hora em que breca a economia, obriga as pessoas a renegociar. Política monetária é isso: custos de curto prazo para ganhos de longo prazo. O problema antes era o da ineficácia da política monetária. Hoje, ela é eficaz [...] Caso não haja mudança no BC, o Henrique Meirelles colocará a inflação a 4,5% em 2010. A questão é o custo disso, e o governo poderia ajudar mais.

FOLHA - Como?
BACHA
- Por exemplo, como o [Antônio] Palocci [ex-ministro da Fazenda] fez: aumentando o superávit primário. Dando um choque de credibilidade adicional na política fiscal. Aumentando a TJLP [Taxa de Juros de Longo Prazo, estipulada pelo BNDES, atualmente em 6,25% ao ano]. Ao contrário do que muitos imaginam, investimento não é necessariamente melhor do que consumo. Quem disse que investimento subsidiado é suficientemente mais produtivo? Esse é um ponto importante. A política monetária sozinha pode, sim, ajustar a economia. Mas a um custo elevado, comparado a uma situação em que o governo, por meio das políticas de crédito e fiscal, contribuísse mais efetivamente. Porque se trata de uma redução da demanda.

FOLHA - O câmbio preocupa?
BACHA
- Muito. Se ficar só na conta da política monetária, o principal canal para reduzir a inflação será o câmbio. Será eficaz do ponto de vista da inflação, mas pode ser muito danoso do ponto de vista do equilíbrio das contas externas. Voltamos à necessidade de ter um complemento pelo lado das políticas fiscal e de crédito. Isso se quisermos que o canal da apreciação cambial seja menos importante no combate à inflação. Meu medo é que uma apreciação excessiva do câmbio, agora, resulte numa depreciação excessiva depois.

FOLHA - O governo quer fazer um superávit maior, mas condicionado a um fundo soberano. Como vê a proposta?
BACHA
- Até entendo, politicamente. Mas irrita. Esse governo vai para o lugar certo, mas andando de costas. Aumenta o superávit primário, mas diz: "Não estou aumentando o superávit. Estou criando um fundo soberano. Vou manter o gasto". A necessidade é evidente: reduzir o ritmo de crescimento do gasto na economia. E o gasto do governo é o componente principal. Quanto mais o governo puder contribuir, menor será a redução de gasto do setor privado induzido pela taxa de juros. Portanto, menor será a elevação dos juros. É simples.

FOLHA - O calendário político sempre atrapalha esse tipo de ajuste. As eleições de outubro e de 2010 não seriam um obstáculo?
BACHA
- Vou fazer uma leitura política e deixar a economia de lado. Se a inflação não estivesse tão ameaçadora, se estivesse como no início do ano, em 0,5% ao mês e na expectativa de voltar a 0,3%, predominaria a opção por acomodar a situação. Seria tentador dizer para o Banco Central: "Segura, não vamos fazer um aperto muito forte". Mas hoje estamos falando de 0,8%, 0,9% ao mês. E acelerando. Se a inflação não reverter, e esse é um cálculo político, o governo perderá a eleição. O presidente Lula já viu isso. Já viu o risco que ele está correndo. O Mário Henrique Simonsen [ex-ministro da Fazenda] disse que a inflação machuca, mas o câmbio mata. Na política, o que mata é a inflação.

FOLHA - Então o ajuste será também uma necessidade política?
BACHA
- Se o presidente Lula deixar essa inflação subir, não vai eleger ninguém em 2010. Ainda como cálculo político, será fundamental assegurar que a inflação reverta a ponto de eleger o sucessor em 2010.

FOLHA - Mas a inflação que vem de fora também não é pouca coisa...
BACHA
- Agrava esse contexto doméstico. A força da inflação no mundo, tanto a de alimentos como a do petróleo, foi uma surpresa. Em 2007, ninguém poderia prever a força disso nas commodities. E ainda hoje há muita controvérsia sobre o peso relativo dos diversos fatores. A emergência da China e da Índia, grandes consumidores de alimentos, cria uma pressão de demanda, inédita e continuada. Também houve uma série de desastres naturais, em importantes regiões plantadoras, como a Austrália. Tudo isso numa situação em que os estoques reguladores estavam baixos.

FOLHA - E há quem fale numa ação especulativa com commodities.
BACHA
- O papel que a especulação desempenha nisso é bastante discutível. O fator especulação tem uma racionalidade. Por causa da crise financeira, houve uma queda forte dos juros. Em conseqüência, houve redução da atratividade relativa dos ativos financeiros tradicionais. Isso criou uma demanda especulativa por commodities como ativos financeiros. Mas ninguém mensura ao certo até onde vai esse movimento.


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