São Paulo, terça-feira, 07 de outubro de 2008

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ARTIGO

Os efeitos não-intencionais das hipotecas de 105%

Colapso financeiro é um golpe pesado na liderança global americana, mas ele abala também Estados-pavão como a Rússia de Putin e a Venezuela de Chávez

PAUL KENNEDY
DA TRIBUNE MEDIA SERVICES

EU ESTAVA correndo pelo aeroporto de Heathrow (Londres) um dia desses, atrasado para um vôo, quando vi de relance um tablóide com a manchete gritante "Fim das hipotecas de 105%!".
Meia hora mais tarde, já no avião, recobrando meu fôlego e minha sanidade, comecei a refletir sobre o que ela significava. E não foi uma descoberta agradável.
O que significam hipotecas de 105% é que bancos insensatos emprestaram a pessoas insensatas (a juros muito baixos, feitos para ser "atraentes"), não apenas todo o capital para a compra de uma casa ou um apartamento, sem que o comprador fizesse pagamento inicial algum, mas também 5% extra -para pagar uma reforma da cozinha, por exemplo.
Essa insensatez foi praticada não apenas no Reino Unido, embora os hábitos de excesso nesse país possam ter ido mais longe que em qualquer outro.
E, a verdade seja dita, se fosse apenas o sistema britânico de crédito imobiliário que tivesse sido seriamente atingido -um colapso de Northern Rock aqui, uma quebra de HBOS (Halifax Bank of Scotland) ali-, o fato não teria causado grandes arrepios em Cingapura ou Dubai.
O problema era que o mesmo tipo de insensatez fiscal corria solto na maior economia do mundo, e, mais importante ainda, que esse câncer "compre agora, pense em pagar depois" do crédito imobiliário sem responsabilidade tinha contaminado bancos e investidores na maior parte do mundo globalizado.
As hipotecas de alto risco "subprime" (o próprio termo sempre me fez agarrar minha carteira, receoso) nos Estados Unidos tinham sido financiadas alegremente por bancos suíços e construtoras de North Yorkshire normalmente austeros. Também tinham sido financiadas indiretamente (mas o que significa "indiretamente" hoje em dia?) por empresas de investimentos norueguesas e chinesas. E o resultado físico era mais do que evidente; ele pode ser visto agora nas fotos de centenas de "McMansões" parcialmente construídas invadindo os campos de cactos do Arizona.
Era o equivalente à onda especulativa envolvendo bulbos de tulipas holandesas no início do século 18. E agora tudo desabou, e com razão. "Sic transit gloria." Mas não são apenas os bancos e os consumidores insensatos que foram atingidos pela crise das hipotecas de alto risco, o colapso de instituições financeira veneráveis e as reações desajeitadas de legisladores (nenhum dos quais parece compreender como funcionam os mercados de capitais modernos -por exemplo, como as transações de curto prazo contrabalançam as de longo prazo). O chamado "efeito marola" está se propagando para muito mais longe, e, à medida que essas ondas avançam, elas estão fazendo muitas vítimas e infligindo muitos danos.
Não podemos deixar de recordar a frase do grande economista austríaco Joseph Schumpeter sobre "o vendaval perene da destruição criativa" que acompanha todo o capitalismo.

Mortos e ururbus
E não há dúvida de que esse vendaval está derrubando muitas árvores; e há muitas outras que ainda vão cair, revelando sua podridão interna. Algumas das baixas têm estado em todas as manchetes: Bear Stearns, Northern Rock, Lehman Brothers, Washington Mutual, o Halifax Bank of Scotland. Outras, como Morgan Stanley e Goldman Sachs, se converteram em criaturas financeiras de tipo diferente para poderem sobreviver. Mesmo as organizações que possuem ativos capitais suficientes para poder selecionar e adquirir parte de suas colegas tombadas nesta liquidação gigante (estou pensando em Barclays, Lloyds, Goldman Sachs, Bank of America, Morgan Stanley, Warren Buffett) estão vendo seu patrimônio capital absoluto diminuído, embora seja certo de que sairão fortalecidas dentro de alguns anos. É improvável que esse jogo de "mortos e urubus" vá parar em pouco tempo, já que muitos outros bancos de dimensões médias estão equilibrados à beira do abismo. Enquanto isso, dezenas de milhares de bem pagos corretores de ações e funcionários de bancos estão perdendo seus empregos, e seus sofisticados padrões de consumo estão se contraindo, o que, por sua vez, vai atingir muitos outros empregos situados mais abaixo na escala alimentar. Pequenas empresas que esperavam poder ampliar suas instalações, ou casais jovens querendo comprar seu primeiro apartamento (não com hipotecas de 105%) encontrarão dificuldades para fazê-lo. Grandes e pequenos saem prejudicados. A agência de investimentos chinesa, que investiu muitos bilhões em Fannie Mae e Freddie Mac, também está lambendo suas feridas. Mas vale a pena olhar rapidamente para algumas das outras conseqüências não pretendidas da "débâcle" das hipotecas de alto risco. À medida que a chamada economia global se contrai, muitas das empresas que formam suas bases vão sentir os efeitos dolorosos disso. Preveja ler que Boeing e Airbus aceitaram cronogramas de entrega muito mais longos para entregar seus aviões de grandes distâncias a várias companhias aéreas. E preveja que os estaleiros coreanos verão uma redução marcante nos pedidos futuros de navios de transporte de contêineres. Preveja uma revisão para baixo dos planos de exploração petrolífera. Preveja que os fornecedores de equipamentos "high-tech" para escritórios, desktops e supercomputadores sofrerão uma grande contração nos pedidos -na proporção da queda terrível de valor de suas ações na Nasdaq nos últimos tempos. Este não é um bom momento para atuar no Vale do Silício. É muito melhor agora estar produzindo uísque escocês de malte único. Você pode pelo menos tomar o uísque.

Estados-pavão
Essa contração também é acompanhada de uma queda grande nos preços de todas as commodities, especialmente o petróleo. Não é algo negativo, pelo menos para os consumidores americanos e de outros países ocidentais dependentes do petróleo, que o preço futuro do barril de petróleo caia para meros US$ 85, digamos, especialmente com o inverno se aproximando. Ademais, esses preços petrolíferos em queda também vão atingir, com ainda mais força, os arrogantes Estados-pavão da Venezuela de Chávez e da Rússia de Putin. Também eles vão se dar conta, mais do que nunca, de que se tornaram dependentes em grande medida da Taxa Interbancária do Mercado de Londres (a misteriosa Libor) e dos preços de mercado do cru West Texas Intermediate para entrega futura. Ser obrigado a suspender a atividade da Bolsa russa, como aconteceu novamente ontem, e mesmo assim assistir à fuga de capitais de investimento de seu país, pode funcionar como freio eficaz à arrogância do Kremlin em matéria de política externa. Até mesmo a superpotência chinesa em ascensão está sendo prejudicada por essas convulsões capitalistas distantes, se bem que em grau provavelmente menor. Mesmo assim, como seu Ministério das Finanças, persuadido pelos conselhos de consultores e banqueiros de Wall Street a guardar bilhões de dólares em chamados "refúgios seguros" americanos, pode não ter sido fortemente abalado pela turbulência financeira das últimas semanas? Deve a China confiar no arrogante sistema capitalista ianque? Será que é de bom conselho investir tão pesadamente em instrumentos contabilizados em dólar? O que vai acontecer com as vitais exportações chinesas ao enorme e volátil mercado consumidor dos EUA? O "Diário do Povo", em Pequim, já publicou um artigo notável do economista Shi Jianxun propondo que o mundo crie "uma moeda diversificada e uma ordem financeira justa que não seja dependente dos Estados Unidos". Então onde vai parar o dólar e sua longa reputação de refúgio seguro? Em última análise, então, o maior perdedor pode muito bem ser os próprios Estados Unidos, e não me refiro unicamente aos padrões de vida de dezenas de milhões de seus cidadãos, mas à sua influência militar-estratégico-diplomática nos assuntos mundiais. Se o status de grande potência de um país se fundamenta essencialmente em seu poder econômico e financeiro, então a crise atual dos mercados de crédito não pode deixar de ser prejudicial aos EUA -um golpe pesado ao final de uma Presidência de oito anos que já enfraqueceu a posição dos Estados Unidos sob vários outros aspectos. Não podemos deixar de admirar os senadores John McCain e Barack Obama por sua coragem -ou nos preocupar com sua falta de imaginação- por quererem ativamente mudar-se para uma Casa Branca tão cheia de louça quebrada. E uma parte tão grande disso tudo tem a ver com aquelas hipotecas de 105% e com a arrogância, a cobiça e a insensatez daqueles que as concederam, dos que as contraíram e dos Legislativos que revogaram a supervisão fiscal prudente. Pesaroso, e enquanto verifico a quantas anda minha própria aposentadoria, vejo que eu tinha razão em me preocupar com o significado daquela manchete de tablóide. Neste nosso mundo globalizado e interligado, nenhum homem (ou mulher) é uma ilha. Assim, nas palavras imortais de John Donne, "nunca pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Paul Kennedy ocupa a cadeira J. Richardson de História e é diretor de Estudos de Segurança Internacional na Universidade Yale. É autor de "Ascensão e Queda das Grandes Potências".

Tradução de CLARA ALLAIN



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