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ARTIGO
Os efeitos não-intencionais das hipotecas de 105%
Colapso financeiro é um golpe pesado na liderança global americana, mas ele abala também Estados-pavão como a Rússia de Putin e a Venezuela de Chávez
PAUL KENNEDY
DA TRIBUNE MEDIA SERVICES
EU ESTAVA correndo pelo aeroporto de Heathrow (Londres) um dia
desses, atrasado para um vôo,
quando vi de relance um tablóide com a manchete gritante
"Fim das hipotecas de 105%!".
Meia hora mais tarde, já no
avião, recobrando meu fôlego e
minha sanidade, comecei a refletir sobre o que ela significava. E não foi uma descoberta
agradável.
O que significam hipotecas
de 105% é que bancos insensatos emprestaram a pessoas insensatas (a juros muito baixos,
feitos para ser "atraentes"), não
apenas todo o capital para a
compra de uma casa ou um
apartamento, sem que o comprador fizesse pagamento inicial algum, mas também 5% extra -para pagar uma reforma
da cozinha, por exemplo.
Essa insensatez foi praticada
não apenas no Reino Unido,
embora os hábitos de excesso
nesse país possam ter ido mais
longe que em qualquer outro.
E, a verdade seja dita, se fosse
apenas o sistema britânico de
crédito imobiliário que tivesse
sido seriamente atingido -um
colapso de Northern Rock aqui,
uma quebra de HBOS (Halifax
Bank of Scotland) ali-, o fato
não teria causado grandes arrepios em Cingapura ou Dubai.
O problema era que o mesmo
tipo de insensatez fiscal corria
solto na maior economia do
mundo, e, mais importante ainda, que esse câncer "compre
agora, pense em pagar depois"
do crédito imobiliário sem responsabilidade tinha contaminado bancos e investidores na
maior parte do mundo globalizado.
As hipotecas de alto risco
"subprime" (o próprio termo
sempre me fez agarrar minha
carteira, receoso) nos Estados
Unidos tinham sido financiadas alegremente por bancos
suíços e construtoras de North
Yorkshire normalmente austeros. Também tinham sido financiadas indiretamente (mas
o que significa "indiretamente"
hoje em dia?) por empresas de
investimentos norueguesas e
chinesas. E o resultado físico
era mais do que evidente; ele
pode ser visto agora nas fotos
de centenas de "McMansões"
parcialmente construídas invadindo os campos de cactos do
Arizona.
Era o equivalente à onda especulativa envolvendo bulbos
de tulipas holandesas no início
do século 18. E agora tudo desabou, e com razão. "Sic transit
gloria."
Mas não são apenas os bancos e os consumidores insensatos que foram atingidos pela
crise das hipotecas de alto risco, o colapso de instituições financeira veneráveis e as reações desajeitadas de legisladores (nenhum dos quais parece
compreender como funcionam
os mercados de capitais modernos -por exemplo, como as
transações de curto prazo contrabalançam as de longo prazo). O chamado "efeito marola"
está se propagando para muito
mais longe, e, à medida que essas ondas avançam, elas estão
fazendo muitas vítimas e infligindo muitos danos.
Não podemos deixar de recordar a frase do grande economista austríaco Joseph Schumpeter sobre "o vendaval perene
da destruição criativa" que
acompanha todo o capitalismo.
Mortos e ururbus
E não há dúvida de que esse
vendaval está derrubando muitas árvores; e há muitas outras
que ainda vão cair, revelando
sua podridão interna.
Algumas das baixas têm estado em todas as manchetes:
Bear Stearns, Northern Rock,
Lehman Brothers, Washington
Mutual, o Halifax Bank of Scotland. Outras, como Morgan
Stanley e Goldman Sachs, se
converteram em criaturas financeiras de tipo diferente para poderem sobreviver.
Mesmo as organizações que
possuem ativos capitais suficientes para poder selecionar e
adquirir parte de suas colegas
tombadas nesta liquidação gigante (estou pensando em Barclays, Lloyds, Goldman Sachs,
Bank of America, Morgan Stanley, Warren Buffett) estão
vendo seu patrimônio capital
absoluto diminuído, embora
seja certo de que sairão fortalecidas dentro de alguns anos.
É improvável que esse jogo
de "mortos e urubus" vá parar
em pouco tempo, já que muitos
outros bancos de dimensões
médias estão equilibrados à
beira do abismo.
Enquanto isso, dezenas de
milhares de bem pagos corretores de ações e funcionários de
bancos estão perdendo seus
empregos, e seus sofisticados
padrões de consumo estão se
contraindo, o que, por sua vez,
vai atingir muitos outros empregos situados mais abaixo na
escala alimentar.
Pequenas empresas que esperavam poder ampliar suas
instalações, ou casais jovens
querendo comprar seu primeiro apartamento (não com hipotecas de 105%) encontrarão dificuldades para fazê-lo. Grandes e pequenos saem prejudicados. A agência de investimentos chinesa, que investiu
muitos bilhões em Fannie Mae
e Freddie Mac, também está
lambendo suas feridas.
Mas vale a pena olhar rapidamente para algumas das outras
conseqüências não pretendidas
da "débâcle" das hipotecas de
alto risco. À medida que a chamada economia global se contrai, muitas das empresas que
formam suas bases vão sentir
os efeitos dolorosos disso. Preveja ler que Boeing e Airbus
aceitaram cronogramas de entrega muito mais longos para
entregar seus aviões de grandes
distâncias a várias companhias
aéreas. E preveja que os estaleiros coreanos verão uma redução marcante nos pedidos futuros de navios de transporte de
contêineres.
Preveja uma revisão para
baixo dos planos de exploração
petrolífera. Preveja que os fornecedores de equipamentos
"high-tech" para escritórios,
desktops e supercomputadores
sofrerão uma grande contração
nos pedidos -na proporção da
queda terrível de valor de suas
ações na Nasdaq nos últimos
tempos. Este não é um bom
momento para atuar no Vale do
Silício. É muito melhor agora
estar produzindo uísque escocês de malte único. Você pode
pelo menos tomar o uísque.
Estados-pavão
Essa contração também é
acompanhada de uma queda
grande nos preços de todas as
commodities, especialmente o
petróleo.
Não é algo negativo, pelo menos para os consumidores americanos e de outros países ocidentais dependentes do petróleo, que o preço futuro do barril
de petróleo caia para meros
US$ 85, digamos, especialmente com o inverno se aproximando. Ademais, esses preços petrolíferos em queda também
vão atingir, com ainda mais força, os arrogantes Estados-pavão da Venezuela de Chávez e
da Rússia de Putin. Também
eles vão se dar conta, mais do
que nunca, de que se tornaram
dependentes em grande medida da Taxa Interbancária do
Mercado de Londres (a misteriosa Libor) e dos preços de
mercado do cru West Texas Intermediate para entrega futura.
Ser obrigado a suspender a
atividade da Bolsa russa, como
aconteceu novamente ontem, e
mesmo assim assistir à fuga de
capitais de investimento de seu
país, pode funcionar como freio
eficaz à arrogância do Kremlin
em matéria de política externa.
Até mesmo a superpotência
chinesa em ascensão está sendo prejudicada por essas convulsões capitalistas distantes,
se bem que em grau provavelmente menor.
Mesmo assim, como seu Ministério das Finanças, persuadido pelos conselhos de consultores e banqueiros de Wall
Street a guardar bilhões de dólares em chamados "refúgios
seguros" americanos, pode não
ter sido fortemente abalado pela turbulência financeira das
últimas semanas?
Deve a China confiar no arrogante sistema capitalista ianque? Será que é de bom conselho investir tão pesadamente
em instrumentos contabilizados em dólar? O que vai acontecer com as vitais exportações
chinesas ao enorme e volátil
mercado consumidor dos
EUA? O "Diário do Povo", em
Pequim, já publicou um artigo
notável do economista Shi
Jianxun propondo que o mundo crie "uma moeda diversificada e uma ordem financeira
justa que não seja dependente
dos Estados Unidos". Então
onde vai parar o dólar e sua longa reputação de refúgio seguro?
Em última análise, então, o
maior perdedor pode muito
bem ser os próprios Estados
Unidos, e não me refiro unicamente aos padrões de vida de
dezenas de milhões de seus cidadãos, mas à sua influência
militar-estratégico-diplomática nos assuntos mundiais.
Se o status de grande potência de um país se fundamenta
essencialmente em seu poder
econômico e financeiro, então
a crise atual dos mercados de
crédito não pode deixar de ser
prejudicial aos EUA -um golpe
pesado ao final de uma Presidência de oito anos que já enfraqueceu a posição dos Estados Unidos sob vários outros
aspectos. Não podemos deixar
de admirar os senadores John
McCain e Barack Obama por
sua coragem -ou nos preocupar com sua falta de imaginação- por quererem ativamente
mudar-se para uma Casa Branca tão cheia de louça quebrada.
E uma parte tão grande disso
tudo tem a ver com aquelas hipotecas de 105% e com a arrogância, a cobiça e a insensatez
daqueles que as concederam,
dos que as contraíram e dos Legislativos que revogaram a supervisão fiscal prudente.
Pesaroso, e enquanto verifico a quantas anda minha própria aposentadoria, vejo que eu
tinha razão em me preocupar
com o significado daquela
manchete de tablóide. Neste
nosso mundo globalizado e interligado, nenhum homem (ou
mulher) é uma ilha. Assim, nas
palavras imortais de John
Donne, "nunca pergunte por
quem os sinos dobram. Eles
dobram por ti".
Paul Kennedy ocupa a cadeira J. Richardson de
História e é diretor de Estudos de Segurança Internacional na Universidade Yale. É autor de
"Ascensão e Queda das Grandes Potências".
Tradução de CLARA ALLAIN
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