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São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2003

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ARTIGO

A China não é culpada pela crise mundial

STEPHEN ROACH
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

A China está rapidamente se transformando no bode expiatório para a fraqueza da economia mundial. A opinião de todo o planeta cada vez mais se une na insistência de que os chineses alterem sua atual política, a fim de aliviar as tensões globais crescentes. John Snow, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), sugeriram que a China precisa elevar o valor do yuan. As autoridades japonesas vêm há muito culpando a China por grande parte de seus problemas, e os europeus acreditam que a chamada âncora cambial chinesa -uma taxa fixa de 8,3 yuans por dólar- significa que caiba ao euro assumir parcela desproporcional do ajuste mundial ao dólar em queda.
Cresce a pressão sobre Pequim por uma mudança de seu atual regime econômico. Mas isso seria um erro imenso para a China, a Ásia e o restante da economia mundial.
Embora o crescimento das exportações chinesas seja verdadeiramente extraordinário -até 33% nos 12 meses encerrados em junho de 2003-, não se deveria interpretá-lo como uma ameaça a uma economia mundial fraca por outros motivos. Por mais de uma década, o vigoroso crescimento das exportações chinesas se originou muito mais das estratégias de terceirização das multinacionais ocidentais do que de um crescimento rápido de companhias chinesas nativas.
De 1994 à metade de 2003, as exportações chinesas triplicaram, passando de US$ 121 bilhões para US$ 365 bilhões. Mas na prática as "empresas de investimento estrangeiro" -subsidiárias chinesas de multinacionais de alcance mundial e joint ventures com empresas de países industrializados- respondem por 65% do ganho nas exportações chinesas ao longo do período em questão. O poder da máquina chinesa de exportação, portanto, deveria ser atribuído mais a "nós" do que a "eles".
O fenômeno chinês não representa, de maneira nenhuma, a conquista de mercado antes detido por empresas dos demais países. Na prática, ele surgiu como efeito colateral da disputa pela sobrevivência competitiva entre os produtores de alto custo nos países industrializados. No ano passado, US$ 53 bilhões em investimentos estrangeiros diretos foram registrados na China, um recorde que torna o país o maior recipiente desse tipo de capital em todo o mundo.
Esses investimentos não foram realizados sob coerção. Os empresários dos países industrializados de alto custo decidiram que terceirizar a produção para a China poderia servir para lhes garantir a sobrevivência. Desmantelar a âncora cambial chinesa desestabilizaria a cadeia de suprimento que se tornou parte tão essencial dos novos modelos globalizados de produção adotados no Japão, nos Estados Unidos e na Europa.
Além disso, se a China elevar o valor de sua moeda, como o mundo deseja, isso poderia gerar bolhas em outros mercados de ativos, especialmente o imobiliário. Também poderia sinalizar aos especuladores de mercado que o yuan se tornou um "alvo lícito".
O governo chinês vem reiterando consistentemente seu compromisso de longo prazo para com um regime cambial flexível e uma conta de capital aberta. Mas sabe muito bem que diversas reformas são necessárias antes que esses objetivos possam ser atingidos, especialmente reformas nos mercados de capital e uma limpeza nos problemas bancários do país. Trata-se de uma lição essencial da crise financeira asiática de 1997/98 e o mundo impaciente não deveria ignorá-la.
Ironicamente, foi o Japão que abriu caminho para a recente onda de ataques à China. Importantes funcionários do governo japonês culparam a China por exportar sua deflação e "esvaziar" o mercado de trabalho japonês. Mas isso está muito longe da verdade. Produtos importados chineses de alta qualidade e baixo custo beneficiam o poder aquisitivo dos assediados consumidores japoneses -exatamente os benefícios que a máquina exportadora japonesa estendeu ao restante do mundo nos anos 70 e 80.
Se você deseja, num exemplo de moeda desvalorizada, basta lembrar de que o dólar esteve cotado, em média, a 300 ienes nos anos 70 e a 220 ienes na década seguinte, dramaticamente mais fraco que sua atual cotação de 115 a 120 ienes por dólar. É hipocrisia que o Japão critique a China pela imitação de uma estratégia crucial para o seu modelo de desenvolvimento. Forçar a China a alterar a cotação de sua moeda é uma desculpa medíocre para a falta de vontade ou capacidade dos japoneses de empreender as reformas necessárias em seu país.
Políticos, funcionários do governo e empresários dos Estados Unidos também estão ocupados com críticas à China. Muitos deles apontaram que o maior déficit comercial norte-americano no momento é com a China -uma diferença de US$ 103 bilhões em 2002, que deve se ampliar ainda mais neste ano. Mas os déficits comerciais não deveriam ser surpresa para uma economia norte-americana na qual a poupança é escassa.
Eles são parte indissociável da crescente necessidade norte-americana de importar poupança externa a fim de financiar o crescimento do país. A única maneira de obter esse capital é manter déficits comerciais imensos. Se os Estados Unidos não estivessem comerciando com a China, esses déficits teriam de acontecer com outros países: Canadá, México, Japão ou até, possivelmente, a Europa.
Como aconteceu no caso do Japão, a China está hoje fornecendo aos consumidores norte-americanos os produtos de alta qualidade mais baratos que os fabricantes mundiais levam ao mercado. Se os Estados Unidos desejam reduzir seu déficit comercial, precisam enfrentar problemas internos fundamentais, a saber, um nível de poupança nacional cada vez mais baixo. Até que o façam, o déficit comercial deve ser a regra nos Estados Unidos, e a opção de alta qualidade e baixo custo oferecida pelo comércio com a China representa o melhor interesse norte-americano.
Períodos de perturbação na economia muitas vezes produzem bodes expiatórios. A China é o alvo errado na fraca economia mundial atual. Está mais do que na hora de o mundo parar de contemplar o próprio umbigo e pôr fim a esse perigoso jogo de acusações.


Stephen Roach é economista-chefe do banco de investimentos Morgan Stanley.

Tradução de Paulo Migliacci


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