São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O memorando sob cenário de guerra

LUCIANO COUTINHO

É fato irretorquível a fragilidade da economia brasileira após oito anos de governo FHC-Malan. O presidente que será eleito em outubro receberá o país em condições muito vulneráveis, sob a tutela do FMI (Fundo Monetário Internacional), com execução orçamentária superapertada, dependendo criticamente de fatores externos fora do nosso controle.
Desde logo, a saúde das contas externas brasileiras depende crucialmente do comportamento dos grandes bancos internacionais. Desde julho -sob o efeito da aversão global ao risco-, o Brasil e suas empresas vêm enfrentando uma evaporação dos créditos externos. Isso significa que as empresas devedoras vêm sendo obrigadas a resgatar dívidas que não mais são roladas. Acresça-se ainda o enxugamento das linhas de crédito ao comércio externo, prejudicando o desempenho das exportações. Em outras palavras, apesar do importante aumento do superávit comercial, aumentou significativamente o déficit de caixa do país com o exterior, e o Banco Central vem sendo obrigado a utilizar reservas para fechar o hiato.
O acordo com o FMI, cujo memorando veio a público na semana passada, é uma confissão explícita dessa fragilidade. É claro que os recursos do Fundo foram bóia de salvação para evitar um naufrágio irremediável e imediato. Essa bóia, diga-se de passagem, foi-nos oferecida com alguma "generosidade" por conta da fragilidade de grandes bancos americanos que, já debilitados pela crise das fraudes contábeis, não suportariam um colapso cambial do Brasil. Até agora, porém, o acordo não se revelou suficiente, per se, para convencer os bancos a retomarem plenamente o crédito ao Brasil. Sem isso, os recursos do Fundo serão drenados, as reservas cairão e a situação cambial persistirá vulnerável embora a salvo de um default.
A reunião para coordenar o retorno das linhas de crédito, efetuada há duas semanas em Nova York entre as autoridades brasileiras e os representantes dos banqueiros, sob os auspícios do Federal Reserve e do FMI, ainda não trouxe resultados expressivos. Na melhor hipótese, conseguiu estancar o processo de fuga, mas não logrou ativar o crédito. Por isso o ministro da Fazenda e o presidente do BC se empenharão em obter na Europa, em reuniões semelhantes, a adesão dos bancos do Velho Continente.
O sucesso desta nova missão depende, porém, de fatores incertos. Os bancos estrangeiros estão sob a pressão de agências de regulação e de seus bancos centrais, que exigem que aumentem as provisões para devedores de risco como o Brasil. Estão também preocupados em não exibir um exposure-Brasil relevante em seus balancetes do terceiro trimestre. Há ainda uma preocupação residual com o cenário sucessório. Esses fatores conspiram para que não haja recomposição do crédito.
A tudo isso, porém, se superpõe o temor de uma guerra iminente no Oriente Médio. Está em curso uma ofensiva política e diplomática do presidente Bush, acompanhada de preparativos militares, para um ataque ao Iraque. Esse cenário, com alta probabilidade de ocorrência, já vem exacerbando nos mercados financeiros o estado de aversão ao risco. A disposição dos bancos de retomar o crédito ao Brasil tende a ser postergada.
Um conflito bélico no Oriente agrava os riscos econômicos globais. Desde logo, o preço do petróleo pode até ultrapassar US$ 40 por barril. Embora a produção do Iraque só represente 3% da oferta mundial e a Opep, hoje, supra apenas um quarto do mercado, é improvável que não haja impactos relevantes sobre o preço. Será incômodo, politicamente, para os países árabes compensar a quebra da oferta iraquiana e, ademais, há o risco de que a guerra acabe provocando a disrupção física da oferta em países vizinhos. Um repique incisivo dos preços do petróleo problematizaria a frágil retomada do crescimento da economia e do comércio mundiais pelo menos até meados de 2003 se a guerra não se prolongar.
É significativa, portanto, a probabilidade de complicação do quadro internacional, com efeitos deletérios sobre o Brasil. Se isso ocorrer, o memorando do Fundo já adverte que "a dinâmica da dívida (do setor público) é sensível a mudanças nas variáveis macroeconômicas, sobretudo na taxa de câmbio real, na taxa de juros real e na taxa de crescimento real do PIB (...) trajetórias desfavoráveis (...) implicariam a necessidade de superávit primário mais elevado para estabilizar a relação dívida/ PIB em 2003". Em suma, mais sacrifícios e mais restrição fiscal sobre o próximo governo estão preanunciados se tudo o que não está sob o nosso controle não marchar bem.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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